A ascensão dos super-heróis pretos: Por que representatividade importa na luta antirracista?

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A ascensão dos super-heróis pretos: Por que representatividade importa na luta antirracista?

Por Gabriel Mattos

“O próximo Superman é preto!” A notícia que parecia piada, de tão improvável de acontecer, estampou manchetes por toda a internet, seja em sites progressistas ou sensacionalistas. Era revolucionário: literalmente denegrir o maior símbolo de virtude estadunidense, isto é, torná-lo indubitavelmente negro. E ele não vem sozinho, afinal, nas telas da Marvel, o próprio Capitão América é preto. Seria esse um sinal de mudança? Uma era de renovação cultural?

ARTE DE CAPA POR TAIAN LIMA

Por muito tempo, a pele preta na tevê estava relegada a uma imagem bem específica: para mulheres, empregadas; para os homens, seguranças. Depois de anos reprisando papéis de pessoas escravizadas escritos por roteiristas brancos, este era o novo esquema para atrelar a imagem negra à servidão. Isto quando, junto, não vinha uma política velada de marginalização — o preto como bandido, agressivo e ruim.

No Brasil, somos a maioria étnica demográfica, mas a opressão sistemática nos torna minoria. Afinal, se por um lado ocupamos as ruas, os transportes públicos e a mão de obra dos trabalhos mais braçais, somos negado espaços nas grandes faculdades, na política e nos jornais. Compare a quantidade de grandes influencers brancos e pretos que você conhece que fica claro como as engrenagens da sociedade silenciam as vozes pretas em todas as esferas.

Mas então, com o brado retumbante de Chadwick Boseman, Wakanda surgiu na imaginação popular para ficar marcada para sempre como uma alternativa de glória, comunidade e humanidade para as pessoas pretas. Junto com o eterno Pantera Negra do Universo Cinematográfico da Marvel, chega a era dos heróis para o povo preto nas telas da tevê e do cinema.

Chadwick Boseman foi o rosto de uma revolução

Pela primeira vez em quase dez anos de Marvel Studios, as pessoas pretas podiam se ver incluídas e respeitadas em seus maiores ídolos. Não como uma figura coadjuvante na jornada de um herói branco, como era o Falcão em Capitão América 2: Soldado Invernal, mas sim como os donos de suas próprias histórias.

O impacto emocional em um grupo social cuja a importância de suas vidas precisava ser constantemente reforçado foi explosivo, resultando em uma das bilheterias mais expressivas da história do cinema. 1,34 bilhão de dólares: este era todo o dinheiro que Hollywood estava perdendo com a manutenção de uma decisão racista em grandes produções. E isto não passou despercebido — nem pela indústria, nem pelo público.

“Viver sem um reflexo por tanto tempo faz você se perguntar se você realmente existe,” declama Beyoncé em um trecho de seu manifesto visual de negritude — Black is King — e esta frase resume bem a relação das minorias com a representatividade. Por muito tempo, fomos praticamente invisíveis nas telas. Mas agora que entendemos como era importante ocupar todos os lugares, não iríamos aceitar migalhas. Merecemos ser vistos e isso foi expresso por um turbilhão cultural.

As riquezas do povo preto foram roubadas ao longo do tempo

A cara das grandes premiações começou a ser questionada. Nas redes, o movimento #OscarsSoWhite exigia um maior respeito ao trabalho de atores e atrizes negros. Afinal, não foram poucas as edições em que não haviam concorrentes negros nas categorias principais e isto precisava mudar.

Quando o assunto é vencedores então, podemos contar nos dedos quantos houveram ao longo da história — para atrizes negras em papéis principais, em especial, a única vencedora na história da competição foi Halle Berry em 2001. Em vinte anos, nenhuma outra mulher negra venceu como atriz principal em uma cerimônia do Oscar. E isso precisava mudar!

A indignação continuou crescendo e se espalhando entre pessoas que antes nunca questionaram o seu lugar no mundo. Uma mudança parecia iminente na indústria, mas quando a pandemia de covid-19 surgiu, as demandas da população negra precisaram ser deixadas de lado. O mundo se unia contra um inimigo em comum, mesmo que de forma isolada.

Michael B. Jordan não se calou e apareceu em protestos

Até o fatídico dia 25 de maio de 2020, quando um policial branco sufocou um homem negro até a morte. As últimas palavras de George Floyd foram “Não consigo respirar” e era como se pessoas negras de todo o mundo perdessem o fôlego junto dele. Não dava mais para aguentar. Havia um vírus matando pessoas há meses, sim, mas o racismo vinha matando a população negra há séculos. Daquele momento em diante, a sociedade acordou e concordou que não basta apenas não ser racista, é necessário ser antirracista.

Assim, multidões inundaram as ruas ao redor do planeta — pessoas pretas, brancas, asiáticas e de todas as etnias unidas contra a opressão sufocante. “Este é um problema sistêmico e institucionalizado do qual todos estão completamente conscientes”, reforçou Don Cheadle em uma entrevista à NBC News. O ator aproveitou para reforçar que esta não deveria ser uma luta exclusiva da população diretamente fragilizada pela agressão constante: o privilégio branco deveria ser um escudo para ajudar nessa causa. “Venham para a linha de frente conosco,” convidou.

Conhecido por ser intérprete do Máquina de Combate nas telas da Marvel, ele não foi o único herói a se levantar nesta mobilização. Nas ruas de Londres, John Boyega, o Finn de Star Wars, liderou multidões. Michael B. Jordan, produtor da próxima série do Superman, discursou em um protesto em Los Angeles pedindo mais oportunidades de emprego para negros. Anthony Mackie, o novo Capitão América, levou a discussão para a grande imprensa.

Sam Wilson promete ser o Capitão América mais político

Um dos primeiros grandes frutos desta discussão mais acalorada e urgente foi a série Falcão e o Soldado Invernal, protagonizada pelo próprio Anthony. Em sua narrativa, vemos a promoção do Falcão de um mero acessório na história de Steve Rogers para o próximo Capitão América. O roteiro, direto e incisivo, colocou o dedo em feridas que as histórias de herói costumam evitar: quase um desabafo aliviado do produtor Malcolm Spellman.

Por muitos anos, ele havia tentado colocar sua experiência pessoal com a negritude nos Estados Unidos em suas produções, mas sempre foi podado pelos grandes executivos. Mas nesta série, ele aceitou o desafio de construir algo que ficaria de legado para facilitar a luta da futura geração.

“Eu realmente acredito que esses ícones negros gigantes são necessários, não só para as nossas crianças pretas, mas também para as crianças brancas absorverem [essa ideia] — nosso povo é grandioso e heroico…,” declarou em uma entrevista ao TV Line, “Quando você começa a ver o impacto direto que um super-herói negro teve no meu sobrinho, isso ficou gravado na minha cabeça.”

Na série, muito se discute sobre o que significaria para um homem negro assumir o fardo de ser o maior símbolo do estilo de vida americano — estilo este construído sobre o sangue e suor do povo negro. Mesmo que acompanhada de uma sensação agridoce, é inegável que o manto do herói na pele retinta de Sam Wilson manda uma mensagem enorme para todo o mundo: esse rosto, que vocês marginalizaram por anos, é o rosto de um herói e ele veio pra ficar.

Além de negro, Phastos é gay e levanta discussões mais amplas na comunidade

A próxima aparição garantida do personagem, já carregando o emblemático escudo, será nos cinemas — Anthony Mackie protagonizará seu próprio filme do Capitão América. Até lá, novas vozes e rosto surgem para representar a comunidade nas principais produções do gênero: tivemos Makkari e Phastos em Eternos, Monica Rambeau em The Marvels, um filme live-action do Super Choque e a estreia do Superman negro produzido por Michael B. Jordan nas telas da HBO Max.

Evidente que um novo capítulo, mais positivo, se inicia na história da representatividade racial, mas casos como o de Ray Fisher, o Ciborgue da Liga da Justiça, mostram que ainda há muito a ser feito. A mudança não pode ser apenas nos holofotes, mas também nos bastidores. Representatividade é uma ótima ferramenta educadora para combater anos de uma cultura racista amplamente difundida e enraizada. Entretanto, a verdadeira mudança só chegará quando todos adotarmos uma nova postura.

Não dá para se importar com as vidas negras apenas na morte ou em datas especiais. Muito menos tentar enfraquecer as lutas antirracistas com argumentos rasos do estilo “todas as vidas importam”. É preciso muita má fé para sugerir que esta é a verdadeira discussão enquanto as pessoas negras morrem simplesmente pela cor da sua pele.

A representatividade garante um futuro melhor, mais compreensivo

Consciência negra não é só um feriado ou um nome bonitinho. Em uma sociedade estruturada para silenciar nossas vozes, é preciso exercitar essa consciência de que a vivência negra precisa de atenção. Nem sempre é uma batalha, porque não há vencedores. É uma conversa!

No dia em que prestamos homenagem à morte de Zumbi dos Palmares, praticamente um rei do passado que lutou por liberdade, vale refletir sobre o futuro que nossos ancestrais sonhavam — o sonho da realeza negra. Tanto Zumbi, quanto Luther King e Boseman entendiam que sua realeza poderia ser uma bênção para os outros, os degraus dourados de um futuro brilhante.

Perdemos muitos reis, mas a luta continua e não podemos abaixar a cabeça. Afinal, não dá pra vestir uma coroa de cabeça baixa. Precisamos ser a base para um novo amanhecer e lembrar de valorizar a cor que construiu as riquezas de nosso país e da civilização ocidental moderna. Nosso maior tesouro é negro. E o negro é rei.

Esta foi a primeira de uma série de matérias da Legião dos Heróis que visa discutir a importância das vozes negras e como a cultura ajuda a moldar essa percepção. Fique ligado porque vem muito mais por aí.

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