Crítica – Ferrari equilibra drama conjugal com adrenalina das corridas em filme estrelado por Adam Driver

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Crítica – Ferrari equilibra drama conjugal com adrenalina das corridas em filme estrelado por Adam Driver

Por Jaqueline Sousa

Existem aspectos na filmografia de Michael Mann que fazem com seus filmes, por mais imperfeitos que possam parecer ocasionalmente, ainda assim colocam o trabalho do diretor em um patamar de excelência invejável. O extremo cuidado com aquilo que ele decide mostrar ao espectador, as camadas sutis por trás das ações de seus personagens e uma incrível habilidade em até mesmo subverter expectativas. Logo, com um extremo domínio da forma, é claro que Ferrari também se beneficiaria do olhar preciso de Mann.

Estrelado por Adam Driver (História de um Casamento, Star Wars), o novo filme do diretor por trás do eletrizante Fogo Contra Fogo (1995) faz um recorte da vida de Enzo Ferrari, o homem que fez de seu sobrenome um verdadeiro império de carros esportivos de luxo, durante um ano bastante conturbado de sua vida pessoal e pública. Melodramático na medida certa, Ferrari explora as nuances por trás de uma figura real, enquanto Mann usa sua expertise para escapar das limitações de uma cinebiografia.

Ficha técnica

Título: Ferrari

 

Direção: Michael Mann

 

Roteiro: Troy Kennedy Martin

 

Data de lançamento: 22 de fevereiro de 2024

 

País de origem: Estados Unidos da América, Reino Unido, Itália e China

 

Duração: 2h 10min

 

Sinopse: Em 1957, nos bastidores da Fórmula 1, o ex-piloto Enzo Ferrari está em crise. A falência assombra a empresa que ele e sua esposa, Laura, construíram do nada uma década atrás. Seu casamento instável é ainda mais abalado pela perda do único filho. Ele decide contrapor essas perdas apostando tudo em uma corrida – a icônica Mille Miglia, na Itália.

Pôster de Ferrari.

Uma corrida até a imortalidade

O vento batendo no rosto e a imprevisibilidade das pistas tornaram Enzo Ferrari (Adam Driver) em um dos homens mais poderosos do mundo. Não apenas pelo dinheiro conquistado com a criação de seu império de automóveis esportivos ao lado da esposa Laura (Penélope Cruz), mas também pela liberdade de transitar pelo mundo como um deus do Olimpo.

Mas o aspecto “inesperado” das eletrizantes corridas de carro nem sempre ficam apenas nas estradas: o ano é 1957, e a Ferrari é assombrada pelo fantasma de uma possível falência em um período bastante delicado da vida de Enzo, que enfrenta uma intensa crise conjugal com Laura após a morte do único filho. É assim que, destinado a resolver a situação do único jeito que conhece, o fundador da Ferrari decide apostar todas as suas fichas na Mille Miglia, uma famosa corrida italiana que pode colocar a sua marca no topo do mundo novamente.

Cinebiografia de Enzo Ferrari faz recorte de um período conturbado na vida do fundador da famosa fabricante de carros esportivos.

A partir do recorte da vida de um homem complicado e repleto de nuances (figuras que Michael Mann adora explorar em seus filmes), Ferrari escapa de muitas armadilhas de uma cinebiografia ao longo de pouco mais de duas horas de duração. Para começar, ao escolher o ano de 1957, o roteiro assinado por Troy Kennedy Martin, com base no livro Ferrari: O Homem Por Trás das Máquinas, coloca uma lupa em um momento específico da vida de Enzo, o que por si só já delimita o foco do longa para que ele não se transforme em um amontoado de fatos facilmente encontrados na página de uma Wikipédia.

Embora pareça que produções do gênero estejam fadadas a cair nesse buraco, como ocorreu com Meu Nome é Gal (2023), por exemplo, filme nacional que explora a vida da cantora Gal Costa de maneira superficial e enfadonha, ou até mesmo o Maestro (2023) de Bradley Cooper, que faz um apanhado de melhores momentos do compositor Leonard Bernstein sem se dar ao trabalho de realmente apresentá-lo ao público, não é isso que acontece com Ferrari.

Elementos clássicos do gênero estão ali, mas Mann consegue usar essas limitações a seu favor por justamente ter um objetivo muito bem definido desde o princípio: explorar um ano conturbado da vida de Enzo Ferrari, aprofundando-se no caráter de um homem cujo casamento de anos com a esposa desmorona à medida que o luto pela morte do filho se intensifica e sua relação extraconjugal com Lina Lardi (Shailene Woodley) o aprisiona em um dilema.

Michael Mann explora as contradições da masculinidade mais uma vez em Ferrari.

Mann sabe como trabalhar essas figuras masculinas repletas de complexidades e contradições sem deixar de humanizá-las no processo, como na relação entre Hanna e McCauley em Fogo Contra Fogo, dois homens em lados opostos que convergem na maneira como questionam suas identidades e ideais de moralidade. Em Ferrari, o diretor segue o mesmo caminho com o apoio de uma excelente performance de Adam Driver, que consegue transmitir com apenas olhares e ações, enquanto a câmera de Mann se mantém muito próxima a ele, os conflitos internos que movem o homem por trás do império de automóveis de luxo, seja na sua relação ácida com jornalistas ou na forma distinta como ele trata Laura e Lina.

Tudo isso se beneficia, claro, do enfoque dado ao filme que, por não estar acorrentado à simples narração dos principais destaques da vida de alguém como Enzo Ferrari, consegue se aprofundar nos aspectos pertinentes ao que acontecia na vida do ex-piloto no ano de 1957. Mesmo que certas questões do passado de Enzo fiquem apenas em um plano mais superficial – como a trágica morte do irmão mais velho, que é tido pela mãe como o filho que deveria ter sobrevivido – Ferrari encontra um jeito de não deixar que isso gere tanta interferência na construção da persona do protagonista, apoiando-se no desenvolvimento das relações interpessoais de Enzo para garantir esse efeito.

É tudo ou nada

De certa maneira, Ferrari não é um filme que gasta energia para tentar ser algo que não é. Seja nos sotaques italianos um tanto quanto caricatos dos personagens, ou nos efeitos visuais exagerados, o filme de Michael Mann assume para si mesmo que não é preciso se levar tão a sério para ganhar aplausos e gritos de vitória. Às vezes, é baixando a guarda e deixando a história ganhar vida por conta própria que resultados interessantes são alcançados, como acontece aqui.

Mas isso não quer dizer que o peso emocional do filme tenha sido deixado de lado. Afinal, Penélope Cruz, por exemplo, não mede esforços ao transformar sua Laura Ferrari em um ponto focal extremamente preciso do longa. Ao viver as dores de uma mãe que sofre com a perda de seu único filho e ainda precisa lidar com as infidelidades do marido, Cruz não hesita em, a partir de uma performance que equilibra silêncio e explosão com a leveza de uma pena, demonstrar os conflitos internos de uma mulher que, embora faça de tudo para manter de pé o império que ajudou seu esposo a construir, recebe apenas descaso em troca.

Penélope Cruz faz performance brilhante em Ferrari.

Assim, não é exagero dizer que Penélope Cruz conquista uma posição mais firme e veemente em Ferrari do que o próprio Adam Driver, mesmo que o trabalho do ator no filme realmente seja ótimo. O diferencial é que Cruz, mesmo em sua posição coadjuvante, nunca se deixa levar pelas limitações de seu papel – ela simplesmente não tem medo de permanecer no centro dos holofotes mesmo quando as luzes se apagam.

Em contrapartida ao drama conjugal, a adrenalina das pistas de corrida invade a tela com uma mixagem de som fenomenal. O ronco dos motores pulsa a cada instante de maneira absurda (no sentido positivo), quase como se fosse um organismo vivo que leva o espectador para dentro da ação em um conjunto de tomadas instáveis e enérgicas. Dá para sentir a velocidade dos automóveis e a imprevisibilidade da pista só de ver Gabriel Leone (Eduardo e Mônica) ou Patrick Dempsey (Grey’s Anatomy) assumindo a direção de um carro da Ferrari, enquanto buscam glória e o reconhecimento do homem que deu o pontapé inicial a tudo isso.

Gabriel Leone vive piloto espanhol em Ferrari.

Com a Mille Miglia na cabeça, Enzo Ferrari enxerga uma maneira de, não somente dar a volta por cima, mas também mostrar que sua marca não está fadada ao esquecimento. E isso por si só já vem com uma carga altíssima de adrenalina justamente pelo aspecto imprevisível do futuro e de como, em um piscar de olhos, a calmaria de uma pista pode se transformar em um completo caos.

A todo instante, Ferrari tenta lembrar o espectador dos riscos de se aceitar a imprevisibilidade da vida através de corridas eletrizantes e até mesmo fatais. É um jogo de “tudo ou nada” que pode custar a vida daqueles que estão envolvidos, mas o prazer pelo esporte silencia qualquer dúvida sobre o real propósito daquilo, como Enzo certamente compreendia e faria de tudo para sentir novamente, nem que fosse por alguns segundos.

É assim que Michael Mann e companhia conseguem destacar Ferrari em meio a um gênero tão tradicional e difícil de ser subvertido. Martin Scorsese fez isso com Assassinos da Lua das Flores (2023), por exemplo, e Mann, embora não alcance o nível de um Fogo Contra Fogo ou Colateral (2004) com seu novo filme, ainda assim mostra como o domínio da forma é capaz de transformar até mesmo o formato mais clássico em algo interessante e bastante competente. Logo, no mundo aterrorizante e cruel das pistas italianas de corrida, Ferrari encontra seu próprio caminho, esbarrando em alguns desvios aqui e acolá, mas sem perder a velocidade em nenhum momento.

Ferrari estreia no dia 22 de fevereiro nos cinemas brasileiros.

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