Crítica – Assassinos da Lua das Flores: Martin Scorsese reinventa sua arte para expor uma das maiores conspirações da história americana

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Crítica – Assassinos da Lua das Flores: Martin Scorsese reinventa sua arte para expor uma das maiores conspirações da história americana

Por Jaqueline Sousa

Há um momento em Assassinos da Lua das Flores em que Ernest Burkhart, o personagem de caras e bocas interpretado por Leonardo DiCaprio, narra brevemente, segundo escritos da tribo indígena osage, como entre abril e maio milhões de flores minúsculas se espalham pelo território do estado de Oklahoma. O fenômeno acontece devido ao aparecimento de flores maiores que “roubam” a luz e a água das menores, provocando sua “morte”.

É isso que os osages chamam de “mês da lua que mata as flores”, uma expressão que Martin Scorsese explora respeitosamente do início ao fim naquele que acaba de se tornar um dos filmes mais sensíveis, coesos e majestosos de sua carreira. Com o apoio de um elenco de peso, o cineasta de 80 anos não somente comanda uma narrativa visualmente expressiva e clássica, como também reinventa sua própria maneira de fazer arte para criar um épico com ares à la John Ford que ousa desafiar as próprias limitações de seu gênero.

Ficha técnica

Título: Assassinos da Lua das Flores

 

Direção: Martin Scorsese

 

Roteiro: Martin Scorsese e Eric Roth

 

Data de lançamento: 19 de outubro de 2023

 

País de origem: Estados Unidos da América

 

Duração: 3h 26min

 

Sinopse: Na década de 1920, membros da tribo nativa americana Osage são assassinados em Osage County, Oklahoma, depois que petróleo é encontrado em suas terras, e o FBI decide investigar.

Pôster de Assassinos da Lua das Flores.

Petróleo, morte e a criação do FBI

É em meio aos anos loucos de uma juventude perdida na década de 1920 – muito bem marcada no imaginário popular pelo escritor F. Scott Fitzgerald em obras como o clássico O Grande Gatsby e Suave é a Noite – que a trama de Assassinos da Lua das Flores desabrocha. Inspirado em uma história real investigada pelo jornalista David Grann em seu best-seller Assassino da Lua das Flores: Petróleo, morte e a criação do FBI, que recria o passo a passo de uma das conspirações mais sombrias da história dos EUA, o filme segue uma narrativa contada pela perspectiva de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), um vetereno de guerra que chega ao país para tentar ganhar a vida após os horrores que vivenciou.

Mas o cenário que Burkhart encontra após o seu regresso é bem diferente do que ele esperava: ali no estado no Oklahoma, os indivíduos mais ricos per capita do mundo são os integrantes de uma tribo indígena osage, que vivem uma vida luxuosa graças a direitos concedidos pelo governo sob a terra que possuem. Quando uma reserva de petróleo é encontrada no local, então, a riqueza da tribo passa a atrair olhares ainda mais cobiçosos, como o de William “King” Hale (Robert De Niro), o bem-sucedido tio de Ernest que é conhecido apenas como “Rei” e que incentiva Burkhart a ser “visto” pelos osages.

É assim que Ernest Burkhart conhece Mollie (Lily Gladstone), uma integrante da tribo pela qual ele cria um forte interesse romântico que não demora muito para gerar frutos em um matrimônio. No entanto, a paz dos osages – principalmente a da família de Mollie – é abalada por misteriosos assassinatos de membros da tribo, que vão morrendo um a um sob circunstâncias desconhecidas. Bom, até que o recém-criado Federal Bureau of Investigation, que futuramente ficaria conhecido apenas como FBI, chega ao local para tentar resolver o caso e levar justiça aos osages.

Relação entre Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) e Mollie (Lily Gladstone) conduz a narrativa.

Petróleo, morte e a criação do FBI. Três elementos que constam no subtítulo do livro de David Grann e que, de uma maneira muito simples, resumem tudo aquilo que encontramos no filme de Martin Scorsese. Com uma narrativa violenta e visualmente similar à de grandes faroestes americanos, Assassinos da Lua das Flores parte da descoberta do petróleo em terras indígenas para denunciar o sistema cruel que oprimiu (e segue oprimindo) culturas nativas, escancarando a destruidora dinâmica entre opressor e oprimido – muito como o fenômeno das flores maiores que roubam espaço de outras menores para reivindicar um local que nunca foi delas.

Por mais que Assassinos da Lua das Flores parta do ponto de vista de um homem branco (afinal, a direção também é feita por um), o filme sempre faz questão de escancarar a violência da colonização, um mal fortemente encabeçado pelos personagens de Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, cada um à sua maneira. Enquanto Ernest, com seus lábios franzidos para baixo e sua postura sempre beirando a defensiva, tenta se safar de atitudes moralmente problemáticas aderindo a uma ingenuidade quase infantil, William Hale surge como aquela figura política que quer agradar gregos e troianos enquanto esbanja uma falsa simpatia e um interesse de segundas intenções em relação aos osages.

Robert De Niro e Leonardo DiCaprio constroem uma dinâmica extremamente interessante no filme.

É uma representação que nunca deixa de evidenciar como a história dos nativos americanos foi cruelmente apagada por um sistema desigual e opressor. É uma violência que choca e nos pega desprevenidos, algo que Scorsese sabe trabalhar como ninguém, basta bater o olho em sua filmografia recheada de mafiosos, crimes e assassinatos.

Usando ângulos e perspectivas que mostram visualmente uma relação de poder obsessiva e aniquiladora, o diretor consegue equilibrar uma contemplação paisagística que bebe de fontes clássicas do cinema de faroeste com uma ágil condução de seus personagens em cena. Scorsese ainda parte de um campo de humor sarcástico que, mesmo que pudesse destoar da história apresentada, consegue deixar ainda mais evidente a discrepante relação entre os osages e os vigaristas brancos que, tomados pela mesma sede que Daniel Day-Lewis possui em Sangue Negro (2007) de Paul Thomas Anderson, fazem o impossível para tirar da tribo indígena seus direitos inerentes.

Filme de Martin Scorsese trata a cultura da tribo indígena osage de maneira respeitosa e sensível.

Scorsese faz isso e muito mais sem deixar, em nenhum instante, de fazer uma representação respeitosa e sensível da cultura nativa durante quase três horas e meia de duração. Um tempo que passa praticamente imperceptível, algo que não ocorre no Oppenheimer de Christopher Nolan, por exemplo, outra recente extensa obra cinematográfica inspirada em fatos que usa e abusa de uma narrativa verborrágica e sem humanidade.

Em Assassinos da Lua das Flores, ocorre o contrário: cada segundo é devidamente aproveitado em sua essência para, a partir da relação entre Ernest e Mollie, mostrar como membros da tribo osage foram cruelmente assassinados por pura ganância e descaso – muitos deles nunca receberam ao menos uma solução justa, mesmo com as investigações do FBI. Para eles, não houve um acerto de contas com a história, e é por isso que é tão importante dar voz àqueles que se perderam no meio de um sistema opressivamente discriminatório.

O grito da coruja

Assim como o líquido preto do petróleo se derrama pela narrativa, a morte é outro grande elemento trabalhado por Martin Scorsese em Assassinos da Lua das Flores. Além da própria simbologia por trás dos rituais osages, há até uma cena no longa-metragem que expõe como essa figura ceifadora está presente em cada canto da narrativa.

O momento em questão é quando Mollie está acamada, terrivelmente debilitada e com a saúde frágil. Ela vê, então, uma coruja, animal que simboliza presságios de morte, entrando pela porta do quarto. Logo em seguida, quem aparece é Ernest, seu marido, com um sorriso inofensivo e pronto para ajudá-la a se livrar do mal que ele mesmo causou.

Uma sequência simples e com uma simbologia evidente que te nocauteia pela maneira como Lily Gladstone se comporta em cena. Embora o filme conte com DiCaprio e De Niro, dois gigantes da indústria que brilhantemente ocupam suas posições como serpentes silenciosas na trama, quem de fato se sobressai nessa empreitada é a intérprete de Mollie.

Lily Gladstone é o grande destaque de Assassinos da Lua das Flores.

Gladstone é o fio que conecta cada aspecto da narrativa, seja com seus olhares vulneráveis ou com suas reações exasperadas diante de toda a devastação que a personagem vivencia. Cada gesto, expressão ou movimentação em cena é milimetricamente calculado pela atriz, não de um jeito engessado mas sim com uma força tão cativante que é impossível desviar os olhos dela.

É uma performance contida que mais expressa do que diz a partir de um trabalho que é conduzido com maestria por Lily do início ao fim. Não é exagero dizer então que, desde a primeira vez que Gladstone aparece no filme, ela simplesmente não tem modéstia alguma ao mostrar tudo aquilo que é capaz de fazer. Mesmo sem emitir uma única palavra, a atriz carrega consigo um domínio tão grande de sua arte que não há como não se encantar com tamanha beleza.

Com uma personagem tão interessante em mãos, Gladstone é a voz que emite o grito da coruja, aquele sinal de mau agouro que permeia toda a narrativa de Assassinos da Lua das Flores, através de Mollie em sua relação com a própria tribo e as conflitantes diferenças com seu marido, Ernest. Novamente, é um filme que não perde tempo em apontar tais aspectos dissonantes, uma escolha que o torna bastante autoconsciente quando isso se faz necessário.

Mesmo sem dizer uma palavra, Lily Gladstone consegue expressar todas as angústias e sentimentos de Mollie.

Diante de todos esses elementos determinantes, Martin Scorsese prova mais uma vez o porquê ele é um dos cineastas mais importantes da história do cinema. Em Assassinos da Lua das Flores, o diretor mostra que não tem receio de viver seu próprio O Sétimo Selo (1957): ele reflete sobre o significado de sua arte, reinventando-se aos 80 anos de idade enquanto joga xadrez com a morte. Assim como Frank Sheeran (Robert De Niro) no final de O Irlandês (2019), Scorsese deixa a porta semiaberta como uma maneira de encontrar sua própria salvação, ou para permitir que seu legado na sétima arte nunca seja esquecido.

Afinal, para alguém que já produziu tantos clássicos do cinema, como os alucinantes Taxi Driver (1976) e Os Bons Companheiros (1990), é lindo ver como ainda há uma luz dentro dele que anseia por novos aprendizados em sua arte, mesmo carregando o peso da mortalidade em suas costas. Foi exatamente isso que Scorsese queria dizer quando declarou à Vanity Fair que “quer contar mais histórias, mas não há tempo”.

É um conflito tão forte que transborda para seus trabalhos, algo que já vinha aparecendo em O Irlandês. Mas é em Assassinos da Lua das Flores que o diretor confronta seu ofício, seu legado e até a si mesmo, sem perceber talvez que, mesmo lutando contra o tempo, existem pessoas nessa vida que simplesmente nunca morrem – elas transcendem por meio da arte que deixam conosco.

Assassinos da Lua das Flores, então, tem um Martin Scorsese que anseia por novos horizontes. Entre planos contemplativos e observações subjetivas, o diretor assume uma posição de aprendiz em uma arte já dominada há anos por ele. Não por fragilidade, mas sim por uma vontade de sempre se reinventar e buscar novas maneiras de explorar um gênero tão clássico quanto esse. A prova está no final inteligentíssimo do longa, onde Scorsese não somente escancara seu legado no cinema, como também evidencia um domínio extremamente consistente de sua arte. Ele pode até acreditar que “não há mais tempo”, mas, para alguém que vai viver para sempre por meio de seus filmes, o tique-taque do relógio não é um inimigo. Sua arte vive e viverá através do amor daqueles que ficam.

Nota: 5 de 5.

Assassinos da Lua das Flores estreia nos cinemas brasileiros no dia 19 de outubro de 2023.

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