Borrando as linhas de gênero: A importância da visibilidade para as identidades não-binárias

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Borrando as linhas de gênero: A importância da visibilidade para as identidades não-binárias

Por Gabriel Mattos

Muitas pessoas temem que a mera existência de personagens fora do modelo cisgênero e heterossexual na televisão possa influenciar de alguma forma as crianças. Falam da imposição de uma “ideologia de gênero”, sem parar para refletir sobre a sociedade em que vivemos. Mas não seria outra a ideologia vigente?

Antes da criança nascer, já começam as festas de revelação. “É um menino!”, alguém comunica, então tudo se enche de azul. Limitam seus brinquedos — carrinhos, bolas de futebol e bonecos de ação. Nas roupas, fica proibido o uso de saias ou vestidos. Nada que seria usado por uma menina. A televisão, então, vem para reforçar, por fim, os padrões esperados de masculinidade. Foi construído, assim, um menino.

Mesmo depois de todo esse processo, algumas pessoas não correspondem às expectativas de sua criação. Toda essa padronização para desempenhar um papel que não lhe serve, uma farsa. Apesar de todos os estímulos para seguir o sistema vigente, essa pessoa não se identifica com o gênero que lhe foi imposto: afinal, esta é uma pessoa transgênero.

Há várias formas de ser transgêneros, mas a falta de representatividade faz com que muitos não consigam explicar com precisão sua experiência. Especialmente aqueles que não existem nos extremos do espectro de gênero, as pessoas não-binárias.

Raros são os personagens, ou mesmo as celebridades, que abraçam sua não-binariedade ao público, então ainda existem muitos mitos que precisam ser derrubados sobre essas identidades. Para desmistificar a experiência não-binária, preparamos essa matéria especial discutindo sobre a sua representação na cultura pop.

O que são pessoas não-binárias?

Elliot Page se declarou uma pessoa transmasculina em 2020

“Uma pessoa não-binária é alguém que não se identifica necessariamente com as definições do que entendemos como homem ou mulher”, explica Bryanna Nasck em entrevista exclusiva à Legião dos Heróis. “Pra mim, a identidade não-binária vem como um processo de você mergulhar em si mesmo e identificar como você quer construir a sua vida”, acrescenta.

Nascida e crescida no interior de São Paulo, ela é uma das maiores vozes da internet quando o assunto envolve questões de não-binariedade. Além de seu canal no YouTube sobre discussões mais identitárias, ela é co-host do podcast Garotrans, junto de Isabel Brandão e Cup, uma pessoa agênero.

Bryanna faz sucesso no Facebook Gaming com suas lives jogando diferentes tipos de jogos enquanto comenta sobre os mais diversos assuntos. Seus vídeos ajudaram jovens de todo o Brasil a se encontrarem. E ela conta que, sem ter essa representatividade na sua época de adolescente, se descobrir foi um processo muito mais trabalhoso.

Bryanna Nasck é uma influencer pioneira da comunidade não-binária

“Ainda nem o termo travesti e trans era discutido quando eu era adolescente. Todo mundo era englobado pelo gay”, lembra. “Eu tive uma dificuldade muito grande no início da minha primeira infância, de adolescência, com questões de sexualidade. Eu sabia que eu gostava de homens também e isso me deixava muito confusa. Porque eu falava: ‘Bom, tem poucas opções aqui, né? Eu vou ter que ser uma travesti ou eu vou ter que ser um gay.’”

Mesmo sem conhecer um termo que resumisse sua experiência, ela sentia que não se enquadrava exatamente em nenhuma dessas identidades. “Conversando com uma amiga minha, discutindo sobre essas questões de gênero, eu falava: ‘Ai, se existisse uma terceira opção, seria perfeita para mim’”, brinca.

Procurando definir sua identidade transgressora, Bryanna lançou mão de um recurso muito comum até meados dos anos 2000: passou a usar o termo “viado” como essa terceira opção. “‘Então como não tem, vou me denominar como viado durante um tempo e vai ser assim.’ Por muito tempo na minha adolescência, quando me perguntavam: ‘Você é homem? Você é mulher?’ Eu respondia: ‘Eu sou viado!’”

Jonathan Van Ness, que comanda o Queer Eye, também é não-binárie

Um fenômeno similar acontecia com a palavra “sapatão”. Hoje, com o avanço da internet e a democratização do conhecimento, sabemos que orientação sexual não tem relação direta com identidade de gênero.

Só aos 16 anos, Bryanna foi conhecer o termo genderqueer — uma das primeiras palavras criadas nos Estados Unidos para definir pessoas que desafiavam os padrões de gênero. Nos dias de hoje, ainda existem pessoas que se identificam como genderqueer, mas longe dos países de língua inglesa, a palavra “não-binário” vem ganhando mais força.

Quais são os gêneros que existem?

Apesar de genderqueer ter surgido como um “terceiro-gênero”, logo ficou claro que as experiências de todas as pessoas que desviavam da binariedade não eram iguais. Cada um sentia seu gênero com algumas particularidades e novos termos surgiram para definir com mais precisão essas vivências.

Stevonnie transita entre os gêneros (Crédito: HBO Max)

Bryanna Nasck, que se identifica como não-binária, explica que “esse termo é um termo guarda-chuva.” Isto é, enquanto todos que fogem da binariedade são definidos por esse termo, pessoas diferentes preferem usar pronomes e termos diferentes para descrever suas identidades.

“Uma das coisas que para mim fez mais sentido quanto não-binariedade é expor a fragilidade dessa estrutura social que foi construída em volta do gênero, sabe?”, alfineta ao comentar sobre masculinidade. “Quando você consegue dar um passo para trás e olhar para tudo isso, vê que é algo muito frágil, muito tênue.”

Existem inúmeras identidades de gênero dentro do espectro não-binário — como agênero, genderfluid, bigênero, gênero neutro, andrógino, pangênero, entre outros — e aos poucos vemos isso sendo melhor explorado na cultura pop. Mais importante que entender todas as nuances que envolvem o gênero de alguém, é apenas respeitar as pessoas como elas são.

Personagens não binários na cultura pop

Taylor Mason em Billions

Apesar de ainda pouco explorados, os personagens não-binários começam a se tornar mais populosos nas séries, filmes e jogos. Bryanna conta que a primeira vez que se sentiu representada em um universo fictício foi assistindo a série Billions, onde Asia Kate Dillon vive Taylor Mason.

“A gente teve um personagem não-binário interpretado por uma pessoa não-binária. Assistir aquele seriado e ver aquele personagem falando sobre sua questão de gênero e seus pronomes… Eu nunca vi aquilo antes, sabe? Deu um estalo pensando ‘Como seria minha vida se eu tivesse visto isso antes? Será que eu teria me descoberto mais cedo? Será que as coisas seriam mais fáceis?’”, reflete.

A segunda temporada de Trem Infinito explora auto-conhecimento (Crédito: HBO Max)

Essa experiência de entender sua própria identidade ao assistir a jornada de um personagem aconteceu comigo, graças a segunda temporada da animação Trem Infinito, disponível no HBO Max. Antes, a protagonista dessa temporada era um reflexo em uma dimensão espelho. Quando se viu independente, começou a questionar quem realmente era.

O desenho mostra ela explorando o que funcionava ou não para ela. Roupas, pronomes, nomes… Ela teve a chance de desconstruir tudo que sabia sobre si mesma e, no final, renasce com uma compreensão surpreendente sobre quem é.

Existem também outros casos bem marcantes de representatividade não-binária em produções recentes. Steven Universo, um dos desenhos que mais explora diversidade na atualidade, apresenta Stevonnie. Na versão original, seus pronomes são “they/them” e elu nasce da fusão entre o próprio Steven e sua amiga Connie. Um jeito simplificado de introduzir a questão para crianças e pessoas cisgênero em geral.

Loki flui entre os gêneros em diversas histórias

She-Ra e as Princesas do Poder, da Netflix, introduz o personagem Double Trouble na terceira temporada. Com a capacidade de mudar sua forma física a bel prazer, elu espalha o caos por onde passa. Usa pronomes neutros em sua forma original, mas seu gênero flui de acordo com sua aparência. Não é à toa que elu se identifica como gênero-fluido.

Loki, na série do Disney+ e nos quadrinhos, é outro grande representante genderfluid que também tem a habilidade de mudar de forma. Essa associação mágica pode ser ótima para transmitir de forma mais simples a ideia de fluidez, mas acaba estigmatizando pessoas de gênero-fluido com a obrigatoriedade de refletir em sua aparência o seu gênero. Fora da ficção, isso não acontece. Seus pronomes não dependem da sua vestimenta.

Do lado da DC Comics, Kid Quick recentemente fez sua estreia como um personagem não-binário. Elu pode ser considerado andrógino, mas não há uma confirmação mais específica de sua identidade. Jesse tem uma história belíssima na antologia DC Pride, que chegou às bancas americanas no início deste mês, em que sai em um encontro com sua namorada, a Aquawoman.

Estilos não definem o seu gênero (Crédito: DC Comics)

Pessoas não-binárias usam pronome neutro?

O uso de pronomes para pessoas não-binárias é alvo de confusão, mas acaba sendo mais simples do que parece. “Existe muito de uma imaginação fantasiosa sobre a existência de pessoas não-binárias”, desabafa Nasck sobre a dificuldade que pessoas cis têm em conversar naturalmente com pessoas não-binárias. “A gente é apenas pessoas. Eu sou apenas Bryanna. Eu não tenho um poder mágico, não tô fazendo uma coisa absurda. Eu apenas vivo minha vida da forma que eu acho melhor para eu viver ela. E apenas isso! E eu estimulo outras pessoas a viverem sua vida da forma mais genuína possível para a felicidade de si mesmas.”

Algumas pessoas preferem ser chamadas por pronomes neutros, o mais popular sendo elu, mas não é o caso de toda pessoa não-binária. “A gente tem que parar para pensar, no final das contas, que independente de como alguém se identifica, a única coisa realmente relevante para a gente conversar com ela é entender como ela prefere ser chamada e a partir disso conversar”, explica Nasck. É mais educado perguntar os pronomes do que supor alguma coisa devido a sua aparência.

A concordância do gênero neutro também não tem mistério. A dica é dar preferência a palavras que naturalmente não tenham demarcador de gênero na língua portuguesa, como “estudante” no lugar de “aluno”. Quando não conseguir pensar em um sinônimo, basta trocar a terminação dos adjetivos para a letra “e”. Nada que um pouco de boa vontade não resolva.

O estereótipo de pessoas não-binárias serem traiçoeiras não tem cabimento (Créditos: Netflix)

“Essas questões de gênero e como você se identifica é uma coisa tão subjetiva que quando a gente conversa com pessoas civis, minimamente decentes, não é algo que é um ponto relevante”, garante “A gente vai conversar sobre comidas, sobre filmes, coisas do tipo. Não fica discutindo performance e performabilidade.”

Pessoas não-binárias são pessoas transgênero?

“Eu tive a certeza de que eu era uma pessoa trans no momento em que eu descobri que eu sou uma pessoa não-binária”, declara Nasck.

Entendemos como pessoas cisgênero aquelas que se identificam com o mesmo gênero que lhes foi designado ao nascer e convencionou-se rotular como transgênero todos aqueles que não se enquadram nessa descrição, o que acaba incluindo sim as pessoas não-binárias.

Como em Pokémon Go, a união é a melhor estratégia (Créditos: Niantic)

Mas existem grupos de pessoas binárias dentro da comunidade trans que se recusam a aceitar dividir a luta por igualdade de direitos com pessoas no espectro da não-binariedade. Como é o caso da mais antiga associação de pessoas transexuais no Brasil, a ANTRA, que recentemente publicou seu entendimento pessoal de quem deveria pertencer ao movimento transgênero em seu Instagram oficial.

“Recentemente a gente teve a declaração da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), no qual ela não entende o termo transgênero quanto um termo que abrange identidades que vão além da exposição binária e eu acho que isso retrata uma problemática que é muito antiga para uma problemática não-binária”, pontua Bryanna.

Jacob Tobia, uma pessoa não-binária conhecida por sua escrita, explicou para o site Them.us que essa tentativa de segregação do movimento trans é muito antiga. Entre as décadas 1970 e 80, a palavra transgênero era usada muito especificamente para descrever pessoas de classe média designadas como masculinas ao nascer que não queriam se sujeitar a intervenções cirúrgicas que tinham o luxo de ir à resorts de cross-dressing.

Jacob Tobia dubla Double Trouble em She-Ra

Mas em 1992, com o ensaio de Leslie Feinberg chamado “Liberação Transgênero: Um movimento cujo tempo chegou” expandiu a definição de trans para pessoas em todo espectro da variação de gênero. Enquanto o ANTRA renega esses estudos estrangeiros por alegar que não definem a realidade brasileira, a maior parte da nossa comunidade concorda em uma necessidade de união da sigla.

“Enquanto organização, elas estão focando nas suas próprias reivindicações e eu não vejo necessidade delas englobarem também as minhas necessidades enquanto pessoa não-binária. Eu enquanto uma pessoa não-binária transfeminina me entendo enquanto uma pessoa trans, vivencio a minha experiência enquanto uma pessoa trans”, declara Nasck.

Jacob também lembra que, em 1987, a ativista Sandy Stone escreveu em “O Império Contra-Ataca, um manifesto pós-transexual” um texto que convocava a comunidade trans a pensar “fora das fronteiras do gênero” para desafiar a descriminação. E essa ideia de unidade política reverbera entre pessoas trans até os dias de hoje.

Shep aparece em Steven Universo: Futuro (Créditos: HBO Max)

“As minhas reivindicações vão continuar estando nas pautas não-binárias e também nas pautas de questões de transgeneridade que envolvem também as pessoas binárias, pois eu acredito que é impossível a gente lutar por uma sociedade que impeça o desenvolvimento desse preconceito tão grudento e tão grotesco enquanto a expressões de gênero e possibilidade de existir se eu lutar só pelo meu e não pensar no todo, sabe?”

Celebração do Orgulho na Legião

No final das contas, o melhor jeito de construir uma sociedade preparada para abraçar todos os tipos de pessoas é caminhando juntos. Para conquistar um mundo mais justo para pessoas trans, não podemos esquecer de acompanhar as demandas das pessoas com deficiência, dos indígenas, das mulheres, da população negra e afins, para entender como podemos usar nossos privilégios para ajudar ao máximo.

Com esse intuito, de amplificar vozes LGBTQIA+ e trazer mais consciência para o nosso papel como comunidade Legião em ajudar nessa luta, que surgiu o Momentos Legião especial em comemoração ao mês do Orgulho LGBTQIA+. O mês de junho pode ter acabado, mas as vozes LGBTQIA+ que escreveram artigos incríveis ao longo da semana continuarão a te acompanhar nas matérias da Legião por todo o ano.

Continuaremos sempre expressando nosso orgulho pelo movimento, por aqueles que pavimentaram nosso caminho e pelas novas vozes que estão surgindo. E, também, pelo lugar que nos permite falar tão abertamente sobre isso.

Assim, até o último dia de junho, lançamos materiais especiais sobre a relação da cultura pop com a comunidade LGBTQIA+ serão lançados em todas as nossas redes. Estamos no Instagram, no Twitter, no YouTube, no TikTok e, claro, aqui no site.

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