Representatividade bissexual na cultura pop e queerbaiting

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Representatividade bissexual na cultura pop e queerbaiting

Por Melissa de Viveiros

Falar em representatividade muitas vezes causa reações imediatas e negativas das pessoas. Enquanto muitos ainda hoje agem como se o assunto fosse uma questão “forçada por uma minoria” ou mesmo sem importância, a realidade é que a maneira como pessoas são retratadas importa, mesmo quando essa retratação ocorre por meio da ficção. 

Em uma análise sobre a representatividade bissexual encontrada em filmes e TV em 2018, James Crump explica que “representação não é arbitrária, e não é só um exercício em marcar itens em uma lista, mas sim algo que ajuda a moldar e mudar percepções no mundo real”. Obras de ficção por si só não determinam como alguém pensa, mas a repetição de padrões tem impacto em como um público reage a determinada coisa. Isso se torna ainda mais verdadeiro dada a quantidade de tempo que a mídia, em suas mais variadas formas, toma diariamente das pessoas. E quando se trata da cultura pop em específico, esse impacto se reflete não somente em como o público entende o que consome, mas também em como as representações presentes nela se tornam modelos. 

Por causa dessa importância, esse artigo tem como objetivo discutir as representações da bissexualidade na cultura pop. Mais do que falar de quantidade, no entanto, pretendemos falar da qualidade dessas representações — e explicar os problemas por trás de declarar um personagem como bissexual sem jamais explorar essa parte de sua identidade.

A bandeira bi.

O que é bissexualidade?

A pergunta pode parecer redundante, mas é importante começar do começo. Antes de discutir representações de bissexualidade na mídia, é necessário saber como defini-la. 

Na realidade, a tarefa é mais complexa do que parece. Mesmo dentro da comunidade LGBTQ+ existem muitas discussões acerca do assunto, e diferentes pessoas que se identificam com o termo o utilizam de forma ligeiramente diferente. Inicialmente, a ideia de muitos é que bissexual se refere à atração por dois gêneros, o que excluiria outras identidades de gênero além de “homem” e “mulher”. Para a maior parte das pessoas que se identificam como bi, no entanto, esse não é o caso, e o significado do termo vai além. Assim, ele se refere à atração por pessoas do seu próprio gênero e de outros, incluindo pessoas não-binárias. 

É importante notar que não existem “regras” para como essa atração se manifesta. Alguém não é mais ou menos bissexual por ter mais relacionamentos ou sentir atração mais frequentemente por pessoas de um determinado gênero que de outro. Da mesma forma, estar em um relacionamento, seja com uma pessoa do mesmo sexo ou de outro, não torna a pessoa gay ou hétero. Pessoas bissexuais não deixam de ser o que são de acordo com seus relacionamentos. 

A ativista Roby Ochs explica:

“Eu me chamo de bissexual porque eu reconheço que tenho em mim o potencial de sentir atração — romanticamente e/ou sexualmente — por pessoas de mais de um sexo e/ou gênero, não necessariamente ao mesmo tempo, não necessariamente do mesmo jeito, e não necessariamente no mesmo grau.”

Assim, as experiências de cada pessoa que se identifica como bissexual variam muito. Enquanto alguns sentem atração por pessoas de todos os gêneros no mesmo nível, para outros é mais comum se sentir atraído por um gênero específico, por exemplo. O que se mantém constante é a atração por mais de um gênero, independente de como ela aconteça.  

Cait Loitz como Sara Lance. A personagem do Arrowverso se tornou uma das representações mais populares de bissexuais na TV.

A bisexualidade nas séries

No começo dos anos 2000, algumas séries de TV começavam a dar mais espaço para personagens LGBTQ+. Apesar disso, eles eram uma minoria, e quando se trata de temas relacionados à bissexualidade, em grande parte o assunto era tratado como piada, apresentado negativamente ou invisibilizado nas próprias discussões apresentadas. Este último, por exemplo, era o caso com Sex and the City, na qual uma das personagens sugere que a bissexualidade é apenas uma fase anterior à homossexualidade.

Mesmo séries elogiadas por trabalharem a representação LGBTQ+ de forma positiva por vezes falham quando se trata de explorar a bissexualidade, principalmente de forma aberta. Orange Is the New Black conta com uma de suas principais personagens, Piper Chapman, se relacionando com homens e mulheres. Ainda assim, a palavra bissexual só é utilizada na quinta temporada da série, quando a mãe da personagem se corrige após se referir a ela como lésbica. 

As representações mais recentes, no entanto, vêm se destacando pelos avanços em termos de qualidade. É o caso, por exemplo, de Sara Lance no Arrowverso. A personagem inicialmente se envolveu romanticamente com Oliver Queen, mas logo foi revelado que ela também havia tido um romance com Nyssa Al Ghul. Depois disso, seu papel no universo cresceu e ela recebeu papel de destaque em Legends of Tomorrow, mas sua bissexualidade não foi apagada por isso. Muito pelo contrário, a série permitiu que ela explorasse diversos relacionamentos com pessoas de ambos os sexos, tratando tudo de modo tão natural quanto se esperaria ver na retratação de um personagem hétero. Sara não é definida por ser bissexual, mas isso não deixa de ser parte de sua identidade e construção.

Harry Shum Jr. como Magnus Bane em Shadowhunters.

Magnus Bane, de Shadowhunters, é outro exemplo considerado positivo. Ao longo de sua participação na série, o feiticeiro não é colocado como uma pessoa promíscua por causa de sua sexualidade. Ao mesmo tempo, a série explora seus romances passados, mostrando a importância que relações com diversos gêneros tiveram para ele e como sua ligação com essas pessoas o levou para onde ele está. Magnus pode não ser o protagonista, mas não deixa de ser um dos principais personagens da trama, e seu romance com Alec, bem como seu passado, são trabalhados de modo que respeita essa parte da identidade do personagem sem reduzi-lo somente a isso.

Enquanto Game of Thrones está longe de ser um grande exemplo quando se trata do tratamento que seus personagens LGBTQ+ recebem, a série também recebeu elogios por causa de Oberyn Martell. O personagem de Pedro Pascal cai em estereótipos no que diz respeito à promiscuidade, mas apresenta outras características que o tornam mais positivo. Apesar de se relacionar com múltiplas pessoas, seu amor por Ellaria fica claro, e sua naturalidade em relação à sua sexualidade são pontos favoráveis, que tornam a representação do personagem melhor. Embora não seja um problema que um personagem tenha uma vida sexual ativa ou que não tenha pudor quando o assunto é sexo, a realidade é que, quando se trata de representatividade bi, esse tipo de retratação reforça os estereótipos negativos, principalmente por não existir variedade o bastante para que este não seja o único tipo de representação que acontece.

Mesmo nos casos mais positivos, no entanto, um problema persiste: a ausência da palavra bissexual. Poucos personagens da ficção se declaram como tal abertamente, favorecendo as generalizações como se declararem fluidos ou dizerem que gostam de homens e mulheres, ou mesmo que não se importam com gênero. Mais uma vez, não há nada necessariamente errado com isso — mas para uma identidade que sofre com a invisibilidade de ambos os lados, as declarações diretas e abertas ainda fazem falta.

Oberyn Martell e Ellaria Sand em Game of Thrones. Ambos os personagens são retratados como bissexuais na série.

A invisibilidade do B

A bissexualidade sofre apagamento de várias maneiras, e não somente por parte de pessoas heterossexuais. Infelizmente, pessoas que se identificam como bi ainda são vistas como indecisas, sendo excluídas por pessoas hétero bem como por homossexuais. Isso faz com que pessoas bi fiquem “no meio do caminho”, sem contarem com ampla aceitação de qualquer um dos lados.

Um argumento bifóbico comum por parte de outras pessoas LGBTQ+ é que bissexuais sofrem menos preconceito quando se relacionam com o sexo oposto, o que as tornaria “menos” parte da comunidade. Ao mesmo tempo, pessoas hétero manifestam opiniões semelhantes ao considerarem que um relacionamento sério entre uma pessoa bi e alguém de gênero diferente significa que a pessoa “se decidiu”. Ninguém deixa de ser bi por causa de seus relacionamentos, e ambas essas opiniões demonstram como o apagamento da bissexualidade como identidade válida e permanente ainda é recorrente.

Isso se reflete nas representações encontradas na mídia, muito além da falta de verbalização do ser bissexual. Na realidade, o que acontece muitas vezes é o oposto: personagens que são declarados como bissexuais por seus criadores ou editoras, mas que jamais tem isso explorado de forma condizente, ou tem papel reduzido quando se trata de romance. 

Esse é o caso que se encontra no universo dos super-heróis frequentemente. Muitos personagens bi, embora abraçados com carinho pela comunidade, não tem romances representados a não ser que eles sejam com pessoas do sexo oposto. Apesar de os criadores desses personagens chamarem a atenção do público para esse aspecto, ele nunca é trabalhado de fato, se limitando a comentários externos a uma produção, como entrevistas sobre um filme, ou a menções e propaganda de heróis nos quadrinhos.

O caso da Mulher-Maravilha

A Mulher-Maravilha é considerada um ícone bissexual.

A DC Comics conta com um enorme exemplo disso: a Mulher-Maravilha. A falta de desenvolvimento é tamanha que, ainda hoje, muitas discussões debatem se a personagem é realmente bi ou não. Se por um lado a editora não hesita em usá-la quando se trata de parecer aberta e conquistar o público LGBTQ+, por outro Diana não se envolve em romances que não sejam com homens. 

A primeira confirmação “oficial” da bissexualidade da personagem teria vindo por meio de Greg Rucka. Em uma entrevista, o roteirista confirmou que a amazona seria queer, termo “guarda-chuva”, ou seja, utilizado por pessoas que se identificam como LGBTQ+ porém sem uma especificação, seja por ainda estarem se descobrindo ou por pura preferência. Em sua entrevista, ele diz:

“Sim, [Mulher-Maravilha é queer]. Mas eu acho que é mais complicado. Esse é inerentemente o problema com Diana: nós tivemos uma longa história de pessoas — por uma variedade de razões, incluindo pura empolgação, o que eu acho que é a pior razão — dizendo, ‘Ooo. Veja. São as Amazonas. Elas são gays!” 

E quando você começa a pensar sobre dar ao conceito de Themyscira o que ele merece, a resposta é ‘Como elas poderiam não estar todas em relacionamentos com o mesmo sexo?’ Certo? Não tem sentido lógico além disso.

É feito para ser o paraíso. Você deveria poder viver feliz. Você deveria poder — em um contexto onde alguém pode viver feliz, e parte do que um indivíduo precisa para essa felicidade ser ter um parceiro — ter um relacionamento romântico e sexual recompensados. E as únicas opções são mulheres.

Mas uma Amazona não olha para outra Amazona e diz, ‘Você é gay.’ Elas não fazem isso. O conceito não existe.

Agora, estamos dizendo que Diana já amou e teve relacionamentos com outras mulheres? Como eu e Nicola [Scott] abordamos isso, a resposta é obviamente sim.

E precisa ser sim por muitas razões. Mas talvez a mais importante delas seja que, se não, então ela deixa o paraíso apenas por causa da potencial relação romântica com Steve [Trevor]. E isso diminui a personagem. Isso iria prejudicar a personagem e diminuir seu heroísmo.”

Na HQ de 2016 Mulher-Maravilha: Ano 1, escrita pela dupla, as palavras de Rucka de fato se concretizaram. Ainda que Steve Trevor continue sendo o principal par romântico da heroína, seu relacionamento com Mala, uma das outras Amazonas, é explicitamente citado, trazendo a bissexualidade da heroína para o universo da DC. O problema é que, desde então, muitas histórias da Mulher-Maravilha surgiram, nenhuma que fizesse menção à sua bissexualidade independente do romance contido nelas.  

Diana se refere à Mala como sua amante em Mulher-Maravilha Terra Um.

Em dezembro do mesmo ano, uma antologia chamada Love is Love foi publicada pela IDW Comics, com parceria da DC. A obra trazia diversas histórias curtas que buscavam homenagear as vítimas do atentado à boate Pulse, na Flórida. Entre elas, uma das histórias utiliza Diana como símbolo, abordando inclusive os muitos questionamentos acerca de sua sexualidade. 

Ainda que seja significativo que uma personagem tão grande da editora seja um símbolo para muitos, sua utilização é esvaziada deste significado quando ela só acontece por ser oportuna. Quando se trata de exaltar a representatividade promovida pela editora ou apresentar a heroína como um símbolo, ser bissexual é apresentado como relevante. No entanto, em suas histórias em romances, este não é um elemento abordado diretamente, no que parece medo de alienar parte do público que, infelizmente, permanece cheia de preconceitos. 

O painel de Mulher-Maravilha na antologia Love is Love.

O caso da Mulher-Maravilha, além de emblemático, não é único: são diversos personagens que, apesar de declarados bi ou de histórias que sugerem isso, nunca recebem desenvolvimento que justifique isso na prática. Em 2016, Tony Stark passou a ser listado por muitos como bi por muitos, devido à um painel do volume 8 de Superior Iron Man. A cena sugere seu envolvimento com homens e mulheres, mas quando se trata de relacionamentos bem desenvolvidos, o personagem nunca se envolveu com pessoas do mesmo gênero. Outros, como Mera, são declarados bissexuais, mas isso só é visto em universos alternativos, dando espaço para que desculpas como “não ser canônico no universo principal” continuem sendo utilizadas. 

Na minissérie Homem-Aranha e Gata Negra – O Mal no Coração dos Homens, a Gata Negra demonstra interesse em ambos os sexos, pensando em como sente falta de ter um namorado ou namorada. Embora o título tenha sido lançado de 2002 a 2006, a bissexualidade da personagem nunca foi trabalhada depois disso, de modo que muitos acreditavam que a revelação da sexualidade da personagem teria vindo este ano, em Black Cat #5, onde fica explícito que ela teve um relacionamento com uma mulher. Em cerca de 15 anos, nenhuma trama com foco nela contou com qualquer desenvolvimento além de um breve quadro com os pensamentos da personagem.

Outros tem introduções melhores, mas que no fim também são esquecidas e deixadas de lado. Em 2015, a Mulher-Gato teve sua bissexualidade confirmada em uma série estrelada por ela, onde a personagem se envolveu romanticamente com Eiko Hasigawa. Ainda que dentro da série o romance tenha sido bem trabalhado, o romance foi breve e teve pouca importância para os caminhos que a personagem segue daí em diante. 

Eiko Hasigawa e Selina Kyle se beijam em Mulher Gato #39, de 2015.

Assim como com Diana, a maior parte desses personagens possuem interesses românticos antigos e extremamente importantes em suas histórias, sempre de gênero diferente de seu próprio. Mesmo que não seja intencional, esse tipo de representação acaba se alinhando com mais um estereótipo prejudicial, principalmente quando se trata de mulheres: o de que bissexuais na verdade são hétero, basta encontrar o parceiro certo. 

Quando os quadrinhos se tornam live-actions

A situação se torna ainda mais problemática quando se trata da transposição desses personagens para os cinemas. Apesar do enorme alcance e influência que os quadrinhos possuem, é inegável que os universos construídos por meio de séries e filmes atingem um público ainda maior. Se antes da pandemia produções do MCU, por exemplo, conseguiam reunir milhares de fãs em suas pré-estreias nos cinemas, atualmente as séries de TV continuam tendo esse impacto. 

Assim, essas obras têm influência sobre um enorme número de pessoas. Isso só torna ainda pior que, na maioria das vezes, elas se recusem a apresentar personagens LGBTQ+ como tal. Não é sem motivo, por exemplo, que o “primeiro personagem gay” do Universo Cinematográfico da Marvel tenha se tornado piada. Essas representações só conseguem permissão para existir se forem apresentadas de maneira sutil, facilmente excluídas nos mercados que não as aceitariam, pequenas o suficiente para não causar incômodo ao público que ainda se agarra ao preconceito. Outras vezes, o assunto é comentado apenas por trás das câmeras, discutido em entrevistas mas nunca concretizado no produto final.

Mulher-Maravilha, Homem de Ferro, Mulher-Gato e Mera são todos personagens que já apareceram em live-actions. Apesar disso, nenhum deles foi retratado como bissexual. Muitos justificariam esse tratamento com os já citados romances principais que cada um deles possui. Mesmo que essa explicação seja aceita, ela não é o suficiente para que outros tantos personagens LGBTQ+ dos quadrinhos tenham sua sexualidade apagada.

Margot Robbie como Arlequina em Aves de Rapina. A personagem é bissexual nas HQs.

Um caso que se destacou nesse sentido recentemente envolveu a Arlequina. Enquanto nos quadrinhos a personagem teve seu relacionamento com a Hera Venenosa sendo desenvolvido por algum tempo, nos filmes isso nunca aconteceu. A ausência da icônica vilã do Batman nos live-actions poderia ser justificativa para isso, se parte da motivação para que ela não tenha chegado às telonas não fosse exatamente a resistência a apresentar o relacionamento das duas. 

Prova disso é o comentário de Margot Robbie, intérprete da Arlequina. Em entrevista ao Den of Geek, a atriz comentou que vem insistindo a muito tempo para que Hera seja trazida para os filmes:

“Acredite, eu falo sobre isso o tempo todo. Eles devem estar cansados de ouvir, mas eu fico tipo, ‘Hera Venenosa, Hera Venenosa. Vamos lá, vamos fazer isso.’ Eu fico muito ansiosa para ver o relacionamento Arlequina-Hera Venenosa nas telas. Seria tão divertido. Então eu continuo implicando com eles. Não se preocupe.”

Robbie, no entanto, não é a primeira atriz a defender a identidade de sua personagem mesmo sem aparente apoio do estúdio. Do lado da Marvel, isso aconteceu com Tessa Thompson, intérprete da Valquíria. Antes de Thor: Rhagnarok, a atriz chegou a comentar que sua personagem era canonicamente bissexual diversas vezes, mas qualquer menção ao assunto não chegou à versão final exceto por sugestões mínimas que poderiam facilmente ser ignoradas ou interpretadas de outra maneira.

Outro personagem que recentemente se encontrou no centro das discussões sobre bissexualidade foi Loki. Na série estrelada por ele, o protagonista discutiu seus relacionamentos passados com Sylvie, afirmando ter se relacionado com “um pouco dos dois”. Apesar de sutil, a confirmação foi motivo de celebração por diversos fãs, já que tornou o Deus da Trapaça o primeiro personagem de destaque do MCU a se reconhecer abertamente LGBTQ+. Ainda assim, parece improvável que a afirmação vá ter qualquer impacto além do que já foi apresentado.

Apesar de sutil, a confirmação da bissexualidade de Loki é uma das representações mais diretas quando se trata de personagens vindos dos quadrinhos.

Queerbaiting e por que as representações na cultura pop importam

Em 2017, os pesquisadores Hope Comer, Jaime D. Bower e Narketta Sparkman já discutiam o impacto que as representações de pessoas LGBTQ+ na cultura pop impactavam como essas pessoas são vistas pela sociedade. De acordo com eles, “Cobertura e representações da mídia, independente de qualidade ou precisão, são altamente usados como modelo e valorizados por aqueles que tomam parte em qualquer forma de cultura popular”. Essa afirmação já dá uma ideia do porquê representatividade importa — e porque a forma como essas representações acontecem importam ainda mais.

Esse impacto significa que representações negativas muitas vezes reforçam estereótipos já existentes, os mantendo vivos na mente das pessoas e os expondo àqueles que não tiveram contato com eles anteriormente. Por outro lado, boas representações podem ajudar indivíduos que estão em processo de descoberta de suas próprias identidades, possibilitando que eles se identifiquem com as tramas e personagens que acompanham e busquem mais informações sobre o assunto.

Retratando pessoas LGBTQ+ de modo realista ao invés de estereotípico, é possível alcançar tanto quem está se descobrindo, como também desconstruir ideias incorretas que o restante do público possa ter. Ainda que não seja função da mídia educar a audiência, ela tem parte em formar ideias que se tornam comuns e são amplamente aceitas na sociedade. O alcance que a cultura pop possui só a torna ainda mais relevante nesse aspecto, motivo pelo qual é tão importante que, mais do que aumentar o número de personagens LGBTQ+ na ficção, é preciso também se pensar em como essas representações ocorrem.

O romance de Hera Venenosa e Arlequina trouxe representação bi para os quadrinhos da DC de forma concreta.

Ao mesmo tempo, declarar ou sugerir que personagens sejam bissexuais mas mantê-los exclusivamente em relacionamentos heterossexuais não é o bastante. Na vida real, a bissexualidade não deixa de ser válida por causa de um relacionamento. Quando esse é o único modo que esses personagens aparecem na mídia, no entanto, essa deixa de ser uma representação válida, pois se utiliza do que seria mais amplamente aceito por evitar discussões abertas ou complexas em relação ao assunto. Nesse caso, a identidade apresentada não é construída como deveria, sendo utilizada simplesmente como uma suposta prova de inclusão que não é justificada.

É a isso que o termo queerbaiting se refere. Na prática, essa é uma técnica onde obras de ficção ou entretenimento são divulgadas como contendo representatividade LGBTQ+, visando atrair consumidores desse grupo. Ao mesmo tempo em que comentários de criadores e publicidade são utilizados para esse fim, a obra em si se recusa a apresentar esse conteúdo de modo concreto, com o objetivo de manter também o grupo de consumidores que se afastaria devido ao preconceito. A tática se tornou amplamente discutida em relação a filmes e séries, com exemplos que vão desde Supergirl e Falcão e o Soldado Invernal à Supernatural.

Falcão e o Soldado Invernal deixou muitos fãs descontentes por causa de queerbaiting.

O principal problema do queerbaiting é usar identidades reais e válidas como ferramentas de marketing. Ao utilizar essa tática, marcas e empresas usam o desejo que pessoas muitas vezes invisibilizadas pela sociedade têm de se verem representadas, o transformando em apenas um meio de ganhar dinheiro sem qualquer comprometimento com aquela comunidade. Isso se dá desde exemplos como os dos quadrinhos, onde personagens são confirmados como bissexuais apenas para isso nunca ter qualquer relevância em sua caracterização no futuro, ou mesmo por meio de representações superficiais. Em outros casos, produções se utilizam de situações e dinâmicas comumente apresentadas como romance com dois personagens do mesmo sexo, mas se recusam a ir além, sutilmente prometendo algo que nunca pretendem cumprir.

O efeito gerado é de que exista o suficiente para manter esse público engajado, mas não o suficiente para que a representação se concretize como deveria. Além de seu lado exploratório, a tática tem algo de cruel: por meio dela, a sugestão passada é de que essa audiência deve se contentar com o mínimo e o sutil, se mantendo escondida mesmo quando supostamente abraçada, sem espaço para exigir mais. 

Histórias, mesmo fictícias, têm relevância para a formação de pensamentos, opiniões e conceitos de uma sociedade. Histórias têm papel em moldar pessoas. Ainda que muitos se mostrem resistentes, abertamente ou não, o fato é que pessoas LGBTQ+ existem. E suas histórias (nossas histórias) merecem ser contadas, não por meio de sugestões ou representatividade vazia, e sim com tanta variedade e de modo tão completo quanto qualquer outra.   

Celebração do Orgulho na Legião

Você acabou de ler um conteúdo especial do Momentos Legião em comemoração ao mês do Orgulho LGBTQIA+. Boa parte da equipe LH é composta por pessoas da comunidade LGBTQIA+ e a nossa missão é colocar luz em assuntos que são críticos para nossa causa. Queremos expressar nosso orgulho pelo movimento, por aqueles que pavimentaram nosso caminho e pelas novas vozes que estão surgindo. E, também, pelo lugar que nos permite falar tão abertamente sobre isso.

Assim, até o último dia de junho, materiais especiais sobre a relação da cultura pop com a comunidade LGBTQIA+ serão lançados em todas as nossas redes. Estaremos no Instagram, no Twitter, no YouTube, no TikTok e, claro, aqui no site.

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