O orgulho nos quadrinhos da Marvel e DC Comics além do mês de junho

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O orgulho nos quadrinhos da Marvel e DC Comics além do mês de junho

Por Chris Rantin

O Orgulho LGBT+ é manifestado de diversas formas, indo muito além do que apenas o mês de junho no qual ele ganha destaque, reconhecendo a luta da comunidade de cabeça erguida — mesmo com todo o preconceito e violência que enfrenta. Este ano, vimos isso em duas edições especiais das maiores editoras dos quadrinhos, em Marvel’s Voices: Pride e DC Pride, coletâneas de histórias sobre os personagens que são parte desta comunidade em ambos os universos de HQs. 

Como parte do Momentos LH dedicado ao orgulho LGBT+, entrevistei Luciano Vecchio, artista conhecido por seu estilo inconfundível, que trabalhou nas duas HQs e contou o motivo para essas obras serem tão importantes.

A jornada do artista

Luciano Vecchio, artista da Marvel e DC Comics // Créditos: Divulgação

Vecchio é abertamente homossexual, um artista argentino que já trabalhou em inúmeras edições dos quadrinhos da Marvel e da DC, trazendo seu traço elegante e fluído para os personagens queridos das editoras. Recentemente, ele tem ficado cada vez mais famoso por seu trabalho com personagens LGBT+, mas também já esteve envolvido com HQs dos Vingadores, Campeões, Guardiões da Galáxia, Quarteto Fantástico, Batman e Arlequina, Justiça Jovem e Lanterna Verde. 

Sua jornada nos quadrinhos começou há vários anos, sendo alimentada pelo desejo de trabalhar no exterior. “Meus primeiros anos foram desenhando para pequenas editoras independentes dos Estados Unidos, mas também da Espanha e do Reino Unido,” diz Vecchio. “Isso me possibilitou acumular experiência enquanto ganhava a vida. Eventualmente, depois de muitas tentativas, tive minhas primeiras chances na DC e na Marvel que sempre foram meu objetivo.” 

Segundo o artista, a falta de personagens abertamente LGBT+ em sua infância foi algo que o impactou, mas mesmo assim alguns heróis deixaram uma marca positiva em sua vida. “Quando eu era uma criança, eu cresci no armário e em conflito,” revela. “Eu costumava orbitar ao redor desses personagens que eram codificados como Queer e ofereciam uma alternativa mais sensível para a masculinidade, como o Jericó [dos Titãs] e Shun dos Cavaleiros do Zodíaco.” Vecchio conta que Wiccano e Hulkling subiram ao posto de personagens favoritos e fonte de inspiração por surgirem nos quadrinhos quando ele saiu do armário e estava vivendo seu primeiro amor. 

Antes de trabalhar em HQs dedicadas exclusivamente ao Orgulho LGBT+, Luciano ficou conhecido por suas fanarts juntando personagens dessa bandeira, algo que surgiu da sua necessidade de ver os heróis (e vilões) unidos como uma comunidade. Agora, após participar de duas edições especiais, ele sente que a história se completou. “Eu sinto como se estivesse concluído um ciclo, o que começou como uma fanart agora se tornou oficial e isso [unir todos em uma comunidade] não é apenas para os personagens, mas para os criadores e editores envolvidos. Isso faz com que eu me sinta parte de algo grandioso.” 

 As Vozes do Orgulho 

Assemble! Um dos primeiros trabalhos juntando os heróis LGBT da Marvel // Créditos: Divulgação

Lançada no dia 23, Marvel’s Voices: Pride junta um time de lendas — tanto na equipe artística quanto dos personagens. Mostrando os votos de casamento de Wiccano e Hulkling, a celebração do amor e da identidade dos heróis da editora, assim como uma homenagem a longa jornada nas questões de representatividade ao longo dos anos. Enquanto isso, DC Pride, chegou nas bancas americanas no começo do mês, no dia 8, trazendo nove histórias inéditas dos principais personagens LGBT+ da editora — como Hera Venenosa, Arlequina, Apolo e Meia-Noite. Além disso, a editora também introduziu Nia Nal, a Sonhadora de Supergirl, também conhecida como a primeira heroína transgênero a aparecer em live-action, ao universo das HQs. 

Trabalhando nas duas edições, Vecchio foi o responsável por idealizar personagens, escrever histórias e, é claro, desenhar algumas páginas. “Foi algo incrível e meu envolvimento em cada uma delas foi diferente,” explica. “Cada trabalho tem suas particularidades, mas isso depende mais de com quem você colabora e das tarefas que recebe, do que a editora na qual está produzindo.” 

Capa da DC Pride // Créditos: Divulgação

Com a DC Pride, o artista desenhou uma história escrita por Andrew Wheeler, mas isso havia sido planejado inicialmente para um especial dos dias dos namorados. Quando a editora decidiu criar uma edição antológica inteiramente dedicada ao Orgulho, o projeto dos dois foi movido para essa HQ. “Isso foi uma surpresa agradável. Nossa história introduz o conceito da JLQ [Liga da Justiça Queer, formada apenas por personagens LGBT+] e se tornou bem mais significativo neste contexto.” 

Já com a Marvel, Vecchio conta que pediram para que ele desenhasse e escrevesse uma história. “Eu fiquei muito emocionado porque significa muito ser reconhecido como um escritor quando você não é um falante nativo de inglês,” diz. Na HQ, ele conseguiu homenagear alguns dos momentos mais icônicos que a comunidade LGBT+ teve na Marvel, além de destacar seus personagens favoritos.

“Eu entrei no modo nerd total e tentei encaixar TUDO que fosse relevante em poucas páginas,” confessa Luciano. “Como um leitor, essa espécie de história Queer escondida é algo que eu sempre estive juntando em minha mente, então ter uma chance de colocar tudo em uma linha do tempo visual, recapitulando as décadas do passado para termos uma sensação de que ‘isso é o que foi feito até agora’ e ‘tudo isso é canônico’. E a partir disso, convidar o leitor a imaginar onde podemos ir em seguida.”

Para ele, é muito emblemático ter edições especiais para o mês do orgulho nas duas editoras.  “Eu vejo isso como um ponto de virada histórica em questões como representação e a maneira que as editoras se posicionam ao apresentar não apenas personagens LGBT, como também a sua equipe LGBT,” justifica. “A existência dessas edições é algo, há não muito tempo, eu nem sonhava com isso. E agora que aconteceram, o horizonte para o que podemos imaginar foi expandido.” 

Somnus e a celebração da identidade queer

Capa de Marvel’s Voices: Pride // Créditos: Divulgação

Fazendo sua estreia no Marvel’s Voices: Pride, o herói Somnus chegou ganhando grande destaque em uma das capas da antologia. Aparecendo em uma história de Steve Orlando e com a ilustração de Claudia Aguirre, o personagem teve o design e visual criado por Luciano Vecchio, sendo mais uma adição ao cânone LGBT+ da editora. 

Carl Valentino, mais conhecido como Somnus, foi descrito como um mutante que impactou os X-Men de forma extraordinária, mas que, até a edição, não era citado ou conhecido das histórias mutantes. Dotado do poder de controlar os sonhos das outras pessoas, sua inspiração foi em Somnus, o Deus Romano do sono, cuja contraparte grega se chama Hipnos. 

Na época do lançamento do personagem Orlando disse que Somnus era inspirado por sua história e pela experiência das gerações passadas de gerações LGBT: “Embora ainda exista muito trabalho a ser feito, nós chegamos longe como comunidade. Somnus é a chance de explorar como meus parentes queer mais velhos podem ter se sentido, vivendo em tempos de maior preconceito. Ele também é uma chance de celebrar gerações passadas como um todo e reconhecer as lutas que tivemos.” 

De acordo com Vecchio, a Marvel lhe deu total liberdade para criar o visual do personagem, algo que ele fez depois de ler o que Orlando havia criado. “Ele é um mutante oniromante que consegue uma segunda chance em viver a sua vida fora do armário e com orgulho, sendo uma ponte entre todas as idades,” conta. “E da maneira que eu vejo, o espírito deste momento de celebração coletiva e do nosso orgulho e história nos quadrinhos estão imbuídos nele e em seu visual.”

Liga da Justiça Queer e a comunidade

A Liga da Justiça Queer // Créditos: Divulgação

Há alguns meses, a DC Comics surgiu com uma ideia interessante (ainda que um tanto polêmica). Apresentando uma dezena de conceitos que poderiam ser transformados em uma minissérie de HQs no futuro, a editora utilizou suas redes sociais para que os fãs votassem no seu favorito. Entre os temas sugeridos estava Justice League Queer, cuja proposta era apresentar uma nova formação da equipe utilizando alguns heróis LGBT+ em novas aventuras.

Mesmo que tenha recebido inúmeros votos, a ideia perdeu na votação ao disputar contra uma história focada nos Robins, o que levantou discussões e críticas de que a DC Comics estaria criando uma competição para entregar mais representatividade nos quadrinhos. Apesar disso, a equipe fez sua estreia nas páginas de DC Pride, na história “Love Life”, apresentando sua formação composta por Aqualad, Aço, Aerie, Wink, Raio, Bunker, Batwoman, Crush, Extraño, Diabo da Tasmânia, Cavaleiro Brilhante, Meia-Noite, Apolo, Garota 13, Tremor e Syl. Ainda é incerto se a HQ focada na JLQ seguiria essa formação ou estilo, mas os fãs gostaram da ideia de ver alguns personagens LGBT mais apagados da editora recebendo destaque. 

Em Love Life, criada por Andrew Wheeler, Rex Lokus, Becca Carey, Michael McCalister e Luciano Vecchio, Extraño, o primeiro herói abertamente gay da DC Comics, surgindo em 1988, junta personagens gays, lésbicas, assexuais, transgêneros e não-binários para salvar o dia e derrotarem o vilão Eclipso. É então que surge um nome para o grupo, Liga da Justiça Queer, mostrando que não é preciso enfrentar os desafios sozinho. 

Extraño no visual de Vecchio // Créditos: Divulgação

“Tudo isso é mérito do escritor, Andrew Wheeler,” revela Vecchio. “Na história a JLQ funciona mais como um chamado para os super heróis LGBT unirem forças como uma comunidade, é mais isso do que a ideia de uma equipe estabelecida com um time fechado.” 

Segundo ele, Andrew escolheu os personagens, algo que o agradou muito. No entanto, uma vez que essa história havia sido feita muitos meses antes do lançamento da DC Pride, na época Alan Scott, o Lanterna Verde abertamente gay, e Manto Negro ainda não eram parte da continuidade da DC Comics, o que explica o motivo para eles estarem de fora da história. 

Trazer Extraño de volta ao destaque também foi algo que agradou Luciano. Ainda que tenha muita importância para a comunidade LGBT, o herói místico da editora acabou ficando esquecido, sem relevância há um bom tempo. Para Vecchio, além de Extraño ser abertamente gay, o fato dele ser peruano também é algo incrível, fazendo com que ele tenha um novo significado para os fãs de quadrinhos latinos. 

“A maneira que Steve Orlando faz sua magia com ele, resgatando Extraño do limbo dos quadrinhos e dando uma nova energia renovada, respeito, história e potencial para ele, é sempre uma alegria,” diz. “Eu fiquei muito feliz que ele foi incluído na historia. Andrew disse que vê Extraño como o tipo de gay experiente que cuida dos mais jovens e eu não poderia concordar mais com isso.” 

Orgulho além de junho

Wiccano e Hulkling em Marvel’s Voices // Créditos: Divulgação

Mas Extraño está longe de ser o único personagem LGBT que recebe pouco — ou nenhum — destaque dentro das grandes editoras. Até mesmo personagens da comunidade que são utilizados em grandes histórias acabam tendo parte da sua identidade apagada, com isso não sendo mencionado ou trabalhado na trama. 

Para Vecchio, no entanto, isso é algo que está sendo vencido de uma forma crescente. O artista defende que a representatividade é algo que está se tornando mais presente nos quadrinhos, com os personagens LGBT ganhando o destaque que merecem. “Eu acho que, atualmente, isso tem acontecido cada vez mais. Durante a minha pesquisa para a história no especial da Marvel, ficou evidente que essa curva cresceu exponencialmente nos últimos anos e isso continua aumentando, mesmo que [os personagens] não sejam promovidos ou exaltados dessa forma,” reitera. “Nós temos equipes nos quadrinhos com um elenco LGBT grandioso, algumas histórias solo também. Sempre pode haver mais e, para mim, parece que teremos isso.” 

Luciano reforça que o avanço nas questões de representatividade LGBT está chegando de forma rápida, uma vez que finalmente estamos recuperando o atraso dos últimos anos. “A grande mídia sempre leva anos para refletir na cultura pop aquilo que já existia há décadas nas margens, em nossas vidas e nas obras que produzimos e nas histórias que contamos,” justifica. 

Por esse motivo, ele acredita que o futuro será cada vez melhor nessa questão, citando como exemplo o fato de que, nas edições especiais do Orgulho, autores trans e não-binários trabalharam com personagens dessas comunidades.   “Isso precisa acontecer ao longo de todo o ano, mas estamos começando a ver isso,” conta. Contudo, ainda há espaço para melhorar: “O que espero é que tenhamos cada vez mais páginas e tempo para desenvolver esses personagens de uma forma completa o tempo todo, para todos os leitores.” 

Resistir é preciso

Capa da Folha de S.Paulo com beijo de Wiccano e Hulkling // Créditos: Divulgação

Apesar dos esforços das editoras em dar destaque para seus personagens — e artistas — LGBT, o preconceito continua presente entre muitos fãs. Entre comentários ofensivos, ameaças e violência contra a comunidade. 

Luciano explica que lida com essa reação adversa de uma forma bem simples: Focando no seu trabalho e criando um legado de história para aqueles que precisam se ver nas páginas dos quadrinhos. “Como um artista, eu foco a minha energia em mim mesmo, para a criança que eu já fui e para o público que se importa e é receptivo e precisa dessas histórias. Eu não ligo em ganharmos um destaque imenso neste momento. Contar essas histórias para as pessoas que precisam delas é mais urgente.” 

Entretanto, a relação entre personagens LGBT nos quadrinhos vai além dos comentários ofensivos. Como lembramos, na última Bienal do Livro no Rio de Janeiro, a HQ A Cruzada das Crianças sofreu uma tentativa de censura de Marcelo Crivella, o ex-prefeito da cidade. Na justificativa do político, o afeto entre dois homens — um rápido beijo entre Wiccano e Hulkling — era impróprio para crianças. As inúmeras histórias em quadrinhos mostrando, de forma mais ou menos explícita, relações sexuais entre os heróis heterossexuais, violência gráfica e, é claro, centenas de beijos entre casais heterossexuais não foram mencionadas como impróprias na época. 

“Eu fui afetado quando isso aconteceu,” revela Vecchio. “Vivemos um processo político parecido na América do Sul, e o discurso de ódio dos políticos tem repercussões além das fronteiras. Como um autor argentino que trabalha para a Marvel, eu senti urgência em produzir uma resposta cultural positiva para esses personagens. Essa foi a semente da minha história no primeiro especial da Marvel’s Voices. Nossos beijos e nossa existência são nossos direitos.” 

Momentos LH: Orgulho

Você acabou de ler um conteúdo especial do Momentos Legião em comemoração ao mês do Orgulho LGBTQIA+. Boa parte da equipe LH é composta por pessoas da comunidade LGBTQIA+ e a nossa missão é colocar luz em assuntos que são críticos para nossa causa. Queremos expressar nosso orgulho pelo movimento, por aqueles que pavimentaram nosso caminho e pelas novas vozes que estão surgindo. E, também, pelo lugar que nos permite falar tão abertamente sobre isso.

Assim, até o último dia de junho, materiais especiais sobre a relação da cultura pop com a comunidade LGBTQIA+ serão lançados em todas as nossas redes. Estaremos no Instagram, no Twitter, no YouTube, no TikTok e, claro, aqui no site.

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