Crítica – Morte no Nilo: O fascínio pela figura do detetive ofuscado por escândalos da vida real

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Crítica – Morte no Nilo: O fascínio pela figura do detetive ofuscado por escândalos da vida real

Por Jaqueline Sousa

Após dois anos e diversos adiamentos na bagagem, o drama policial Morte no Nilo finalmente vai desembarcar nos cinemas ao redor do mundo. Baseado no romance homônimo da escritora Agatha Christie, de 1937, Kenneth Branagh retorna novamente como um dos detetives mais famosos da ficção, o genial Hercule Poirot, em uma trama clássica de mistério.

Apesar de cumprir seu papel, é praticamente impossível falar de Morte no Nilo sem associá-lo às polêmicas em que a produção se envolveu desde os primórdios de sua divulgação. Indo da crise ocasionada pela pandemia até denúncias seríssimas envolvendo o elenco, como as acusações de estupro e canibalismo contra o ator Armie Hammer, que vieram à tona em 2021, o filme acabou sendo ofuscado por diversas problemáticas. Mas nem isso impediu com que a 20th Century Studios – agora sob o comando da Disney – seguisse em frente com mais um longa-metragem adaptado das histórias da Rainha do Crime.

Ficha técnica

Título: Morte no Nilo

Direção: Kenneth Branagh

Roteiro: Michael Green

Data de lançamento: 10 de fevereiro de 2022

País de origem: Estados Unidos, Reino Unido

Duração: 2h07min

Sinopse: As férias do detetive belga Hercule Poirot, no Egito, a bordo de um glamoroso navio cruzeiro, transformam-se numa procura terrível por um assassino, quando a lua de mel idílica de um casal perfeito é tragicamente interrompida. Situado num cenário épico de paisagens desertas arrebatadoras e as majestosas pirâmides de Gizé, este conto de desenfreada paixão e ciúme incapacitante apresenta um grupo cosmopolita de viajantes impecavelmente vestidos, e voltas e reviravoltas suficientes para deixar o público expectante até ao chocante desfecho final.

Salvando a ordem em uma época de desordem

Tão antiga quanto o próprio surgimento do cinema, a figura do detetive sempre gerou um enorme fascínio entre o público. Um crime impactante, a busca por pistas, a atmosfera sombria digna de um bom suspense e aquele personagem genial que fica encarregado de resolver a questão são elementos fundamentais em qualquer drama policial.

Além disso, é impossível falar de narrativas de mistério sem citar grandes nomes da literatura, como o mestre do horror Edgar Allan Poe, o criador do gênero. Segundo o escritor argentino Jorge Luis Borges, falar de narrativa policial é falar de Poe. Mas o que tudo isso tem a ver com Morte no Nilo? Simples: foi no precursor das histórias detetivescas que Agatha Christie buscou inspiração para criar os seus romances policiais, que marcaram gerações e continuam relevantes até os dias de hoje. Afinal, não é à toa que, em pleno 2022, recebemos uma nova adaptação de um dos livros mais importantes de sua carreira.

Antes de partirmos para a análise do filme, vale ressaltar que o intuito deste texto não é fazer uma comparação com a obra literária que inspirou a adaptação para o audiovisual. Cada mídia é única e possui especificidades próprias, tornando injusto a evidência de certas mudanças ou escolhas narrativas necessárias em cada segmento. Feitas tais considerações, vamos ao que interessa.

Em Morte no Nilo, assim como qualquer outro mero mortal, o icônico detetive Hercule Poirot (Kenneth Branagh) decide tirar umas boas – e merecidas – férias. Mas não em qualquer lugar: ele desembarca no Egito, um excelente local para encontrar paisagens exuberantes, como as magníficas pirâmides, e a paz que necessita. Ou era o que ele esperava, pelo menos, já que um terrível assassinato à bordo de um navio interrompe a lua de mel de um casal apaixonado, fazendo com que o detetive arregace as mangas e volte ao trabalho com urgência. Será que ele vai ser capaz de identificar o assassino antes que o navio chegue ao seu destino final?

Kenneth Branagh retorna ao universo de Agatha Christie como o famoso detetive Hercule Poirot e como diretor do longa.

Esta não é a primeira vez que Morte no Nilo é adaptado aos cinemas: em 1978, Morte Sobre o Nilo, do diretor John Guillermin, deu vida ao clássico livro da Rainha do Crime, contando com nomes grandiosos como Peter Ustinov, Mia Farrow, Bette Davis e Maggie Smith no elenco. Já em tempos modernos – e acompanhando a enxurrada de remakes e adaptações dos últimos anos – Kenneth Branagh assume a direção de mais um longa inspirado na obra de Christie, após seu trabalho em Assassinato no Expresso Oriente, de 2017, outra adaptação homônima da autora, lançada em 1934. 

Assim como Sherlock Holmes, Hercule Poirot é o clássico detetive genial e arrogante que sabe muito bem o que faz. Metódico e extravagante, o inconfundível bigode, sua marca registrada, é apenas uma caracterização a mais que o torna tão misterioso quanto os próprios crimes que soluciona. Aqui, a performance de Branagh segue captando o espírito do personagem que já é familiar a ele, tornando-se uma das presenças mais marcantes do longa. 

A respeito de sua direção, Branagh conduz a trama com consistência, mantendo um jogo de câmeras interessante e que ressalta a beleza do visual. Apesar de não ousar muito, o ator e diretor faz seu trabalho com competência, num clássico enredo policial que consolida a forte presença do mistério na história do cinema, basta lembrar do ápice do cinema noir e os filmes de Alfred Hitchcock, como Janela Indiscreta, de 1954.

Em Morte no Nilo, a lua de mel de um casal apaixonado é brutalmente interrompida por um acontecimento trágico.

É fato que a literatura detetivesca teve grande influência nas tramas policiais do cinema. E todos os arquétipos fundamentais das histórias de mistério estão presentes em Morte no Nilo: o detetive, um crime, as investigações, os suspeitos e a resolução daquilo que parecia ilógico. Claro, não podemos deixar de reforçar a figura do detetive genial, o único capaz de ver aquilo que mais ninguém consegue enxergar. 

Assim, voltando a citar Borges, “salvando a ordem em uma época de desordem” poderia ser facilmente o lema de Poirot, com seus trejeitos e excentricidades que fazem com que ele seja um excelente profissional. Afinal, não é exatamente isso que um detetive faz? É no meio do caos dos crimes e das investigações que Poirot tenta organizar a desordem, dar nome aos suspeitos e ainda lidar com suas próprias questões internas que, apesar de não serem o foco da trama, garantem a humanidade do personagem diante de eventos chocantes e traumáticos. 

A sombra dos escândalos 

Em 2021, Letitia Wright se envolveu em algumas polêmicas devido ao seu posicionamento antivacina.

Como dito anteriormente, não dá para falar de Morte no Nilo sem comentar a longa e problemática jornada do filme até sua estreia nos cinemas. Antes mesmo das polêmicas envolvendo Armie Hammer e Letitia Wright explodirem na mídia, a produção já vinha enfrentando alguns adiamentos desde 2019, ano em que o filme deveria ter estreado. Com uma nova data marcada para 2020, a equipe só não contava com o início da pandemia, que fez com que a produção sofresse alterações novamente. O vai e vem de datas continuou durante 2021, especialmente devido à crise de coronavírus.

E foi durante esse período que Armie Hammer, que faz um interpretação simplória e esquecível do personagem Simon Doyle, foi acusado por canibalismo, assédio e estupro, fazendo com que o estúdio adiasse novamente o filme, agora para 2022. Outra polêmica que pode atrapalhar a recepção da obra envolve Letitia Wright, a Shuri, de Pantera Negra. A atriz foi criticada no ano passado por compartilhar um posicionamento antivacina, embora já tenha negado tais acusações. Sendo assim, a chegada de Morte no Nilo aos cinemas pode até ser um suspiro de alívio aos executivos envolvidos, mas a sombra dos escândalos está presente em toda a atmosfera do filme. 

Morte no Nilo é uma trama detetivesca que mostra as consequências de um amor obsessivo.

Gal Gadot, que vive a linda e rica Linnet Ridgeway-Doyle, também não oferece nenhuma camada dramática relevante à personagem, algo que poderia ter sido melhor aproveitado já que ela é um dos nomes centrais da produção. Em relação aos outros integrantes do elenco, vale destacar Tom Bateman e Annette Bening, que interpretam Bouc e Euphemia, respectivamente. O relacionamento de ambos é um dos pontos mais interessantes da trama, e também faz parte de um arco emocional significativo para o detetive Hercule Poirot. 

Com roteiro de Michael Green (Blade Runner 2049, Logan), o filme apresenta um início morno e, em certos momentos, até beira ao tédio, mas o ponto de virada faz com que o clima detetivesco invada as telas: é quando Poirot começa suas investigações para descobrir quem cometeu o assassinato em alto-mar que o longa ganha vida e capta o interesse dos aficionados por uma clássica história de mistério. Para aqueles que já estão acostumados com o gênero, a conclusão pode até ser previsível, mesmo com a dinâmica que evidencia as consequências de um amor obsessivo. 

Embora seja ofuscado pelos escândalos da vida real, Morte no Nilo cumpre aquilo que se propõe a fazer, divertindo o público que busca por uma clássica história de detetive. Ainda assim, apesar do legado de Agatha Christie, o longa acaba se perdendo na imensidão de obras policiais que Hollywood não cansa de reciclar. 

Nota: 3 de 5.

Morte no Nilo estreia em 10 de fevereiro de 2022 nos cinemas.

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