Crítica – Dias Perfeitos celebra a beleza da contemplação em um mundo de urgências

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Crítica – Dias Perfeitos celebra a beleza da contemplação em um mundo de urgências

Por Jaqueline Sousa

Recomeçar, recomeçar, recomeçar, mil vezes recomeçar, recomeçar de novo, recomeçar sempre, recomeçar, recomeçar. É na voz de Walmor Chagas (Memórias Póstumas) que São Paulo, Sociedade Anônima (1965) revela a dor da constância do cotidiano. Clássico do cinema brasileiro, o filme de Luiz Sérgio Person (O Caso dos Irmãos Naves) explora a angústia de estar preso ao nascimento de um novo dia, onde a rotina de trabalho e das obrigações em meio a uma cidade cinzenta adormece nossos sonhos, vontades e desejos.

Do outro lado do mundo e em um século diferente, há Hirayama (Koji Yakusho), o protagonista de Dias Perfeitos, novo filme do diretor Wim Wenders (Paris, Texas). Enfrentando seu dia a dia como um Sísifo, ele habita uma metrópole acelerada e moderna, mas à sua própria maneira: ao contrário de Carlos em São Paulo, Sociedade Anônima, Hirayama encontra na rotina metódica o conforto para a solidão, mesmo que camufle sua ânsia por contato humano com fitas cassetes e câmeras analógicas. É assim que, fugindo da melancolia de seu Asas do Desejo (1987), Wim Wenders retorna às telas do cinema, apresentando um filme que, apesar da simplicidade da narrativa, revela como um silêncio pode ser ensurdecedor, mas ainda assim confortável.

Ficha técnica

Título: Dias Perfeitos

 

Direção: Wim Wenders

 

Roteiro: Wim Wenders e Takuma Takasaki

 

Data de lançamento: 29 de fevereiro de 2024

 

País de origem: Japão e Alemanha

 

Duração: 2h 3min

 

Sinopse: Hirayama é um homem de meia-idade contemplativo, que vive uma vida modesta e serena, passando os dias equilibrando seu trabalho de zelador obediente dos numerosos banheiros públicos de Tóquio com sua paixão pela música, literatura e fotografia. À medida que nos juntamos a ele na sua rotina diária metódica, uma série de encontros inesperados começa gradualmente a revelar um passado oculto em sua vida feliz e harmoniosa.

Pôster de Dias Perfeitos.

É um dia tão perfeito

Em meio aos acordes românticos da canção Perfect Day de Lou Reed, Hirayama carrega consigo o peso da modernidade e alguns baldes de limpeza. Zelador de uma empresa que garante o bom funcionamento dos banheiros públicos em Tóquio, ele segue sua rotina metodicamente, sempre fazendo as mesmas ações repetitivas que, por mais entediantes que pareçam, preenchem seus dias com propósito.

Para um homem de meia-idade, levar seus dias no modo “Todo dia ele faz tudo sempre igual” à la Chico Buarque parece colocá-lo na posição de apenas mais um dentre uma multidão que atravessa ruas correndo, esbarra em ombros sem pedir desculpa ou se camufla por trás dos rituais da vida cotidiana. É a opressão da rotina se fazendo mais forte do que nossos sonhos de liberdade, mas Hirayama não parece ser intimidado por isso.

Koji Yakusho vive um limpador de banheiros públicos de Tóquio em novo filme de Wim Wenders.

Com uma performance arrebatadoramente silenciosa de Koji Yakusho (A Cura), Dias Perfeitos coloca Hirayama em um mundo hostil para sua vida pacata, simples e de pequenos prazeres. Ao passar despercebido dentro e fora do trabalho, sendo que seus afazeres como limpador de banheiros o transforma em um fantasma diante do caos da metrópole, Hirayama vive um dia de cada vez como se estivesse preso dentro de um looping: ele acorda, rega suas plantas, coloca uma fita cassete no carro, trabalha, volta para casa, lê um livro de William Faulkner, dorme e recomeça tudo isso na manhã seguinte.

Wim Wenders, com sua maestria em transpor visualmente a solidão de seus personagens, como em Paris, Texas (1984), sabe exatamente como fazer com que o espectador sinta o peso da rotina que se arrasta repetitivamente, mas dessa vez ele faz isso sem um ar tristonho e melancólico. Com um roteiro assinado em colaboração com Takuma Takasaki (Honokaa Boy), Wenders constrói sequências visuais semelhantes com leves mudanças angulares (que podem muito bem demonstrar como todos os dias, embora similares na rotina, ainda assim trazem novos amanheceres) para bater na tecla da vida metódica de Hirayama, um homem que vive sozinho com seus pensamentos e hobbies, enquanto busca pequenas motivações para levantar no dia seguinte.

Em meio aos rituais da rotina, Hirayama (Koji Yakusho) celebra os pequenos prazeres da vida.

O que para muitos poderia ser entediante, para o protagonista de Dias Perfeitos é apenas mais uma razão para se estar vivo. Seus registros na câmera analógica, por exemplo, são um respiro, uma pausa e uma contemplação que o levam a sorrir em meio às sombras da vida. É como se essas imagens, as páginas de um livro ou as fitas que preenchem seus ouvidos com música tivessem o mesmo efeito que a poesia tem para o Paterson de Adam Driver no filme de Jim Jarmusch, um motorista de ônibus que enxerga seus poemas como uma maneira de celebrar as pequenas coisas do cotidiano. Afinal, não é encontrando beleza nos acontecimentos simples da vida que cada um de nós sobrevive às opressivas amarras da rotina?

Como em um sonho febril, Wenders confronta Hirayama, que por si só já é um homem recluso e reservado, com o inusitado, como o colega jovem de trabalho que só quer ganhar uns trocados para impressionar a namorada, ou uma sobrinha questionadora e curiosa que, de repente, revela muito sobre ele. É apenas nesses instantes, quando Hirayama parece se lembrar de que não habita o mundo sozinho, que conhecemos um pouco mais do passado de um homem que se fortalece no silêncio e que faz de tudo para não se esquecer de seu propósito.

Agora é agora

Há um momento bastante significativo em Asas do Desejo onde um anjo conforta a mente de um homem que luta contra o caos de sua mente. A cena acontece dentro de um transporte público, onde a câmera vai percorrendo o semblante de pessoas atribuladas com seus dramas particulares. É nesse espaço transitório e comum para muitos indivíduos que Wenders explora o sentido de se estar vivo sob o olhar de anjos que invejam a simplicidade das sensações humanas, como sentir o vento batendo no rosto, segurar uma maçã nas mãos, dançar na chuva, sorrir, chorar, gritar ou amar.

Ao incluir tais aspectos, tanto em Asas do Desejo quanto em Dias Perfeitos – embora o filme dos anos 80 caminhe por ruas mais melancólicas que o atual – Wenders aproveita as duas abordagens para expor como, muitas vezes, deixamos de prestar atenção na singeleza que existe em nossos dias para corrermos em direção a um futuro que nos aprisiona. A beleza da contemplação é substituída pela urgência de buscar “a próxima vez”, ou o que se esconde entre os segundos que se movem no relógio.

Dias Perfeitos nos lembra da beleza da contemplação em uma sociedade caótica e solitária.

É por isso que entrar em contato com um personagem como Hirayama se torna quase um sopro de alívio. Acompanhar a rotina simples e repetitiva de um homem de meia-idade que ganha a vida limpando banheiros em Tóquio pode parecer tudo menos algo minimamente interessante, mas o filme consegue, assim como o protagonista, ressaltar o apelo da simplicidade.

Por mais que Dias Perfeitos corresse o risco de cair em um ciclo enfadonho, o longa consegue desviar dessa possibilidade graças à originalidade de Wim Wenders que, especialmente em sequências mais poéticas, como as cenas propositalmente desconexas em preto e branco que ecoam lapsos do dia de Hirayama durante seus sonhos, busca retratar, com sinceridade e nuances vulneráveis, a jornada de um homem que aceita a inevitabilidade do ato de existir em um mundo onde, mesmo com a segurança dos rituais rotineiros, somos confrontados pelo imprevisto a todo instante.

Filme ressalta a inevitabilidade da vida, mesmo com um cotidiano automático.

Assim, com uma narrativa descomplicada, o filme de Wenders usa os gestos comedidos e os olhares expressivos de Koji Yakusho para conduzir uma trama que exige paciência daquele que observa o dia a dia de Hirayama, oferecendo um resultado que pode até parecer insatisfatório à primeira vista, especialmente se levarmos em consideração uma modernidade cada vez mais dispersa e desatenta, mas que dialoga com a proposta do enredo.

Deixando as respostas rápidas e mastigadas de lado, Dias Perfeitos não tem medo do ócio, pelo contrário: o filme encontra no tédio, na mesmice e no arrastar das 24 horas de um dia a força para contar uma história sensível sobre o que é ser um indivíduo que transita entre as sombras do mundo como um fantasma. Tudo resulta em uma cena final silenciosa, onde somente as expressões de Koji Yakusho, ao encarar mais um nascer do sol, revelam a singularidade de um ser que, mesmo com todas as adversidades da vida, ainda encontra razão para seguir adiante.

Nota: 4,5/5

Dias Perfeitos estreia no dia 29 de fevereiro nos cinemas brasileiros.

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