The Last of Us reconhece os monstros nos seres humanos, mas não comete o erro de igualar sua protagonista a eles

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The Last of Us reconhece os monstros nos seres humanos, mas não comete o erro de igualar sua protagonista a eles

Por Melissa de Viveiros

Atenção: Alerta de Spoilers!

The Last of Us apresentou seu oitavo episódio no último domingo (5), com uma trama que, apesar de não ter um pingo de ameaça do Cordyceps, rapidamente se tornou a mais aterrorizante da temporada para mim. Não sei se necessariamente de modo positivo, mas sem dúvidas de modo impactante.

Talvez meu desconforto tenha sido grande o bastante para me impedir de não questionar se era realmente necessário seguir o caminho de “o maior monstro é o ser humano”. Talvez seja brilhante justamente por isso – porque se David (Scott Shepherd), ali, é o grande monstro, todos sabemos que um apocalipse não é necessário para que pessoas como ele existam no mundo real.

Título do episódio vem de citação da Bíblia mencionada por David.

“Quando Mais Precisamos” separa a dupla de protagonistas, fazendo com que Ellie (Bella Ramsey) seja colocada à prova de diversas maneiras. Aqui, não é somente sua capacidade de sobrevivência que é testada, algo deixado óbvio pelos diálogos que se aprofundam no que a personagem é e como ela é percebida.

Se o antagonista consegue acertar em cheio ao tentar explorar o medo da garota de ficar sozinha, seu discurso não deve ser levado como verdade absoluta. Um dos trechos mais marcantes de sua fala em relação a Ellie é o momento em que David afirma que eles são iguais, líderes natos com corações violentos. Algo como dois lados de uma mesma moeda, duas faces de um mesmo todo, e que parte do público pode ver como sendo provado verdadeiro pela brutalidade da garota na cena final.

Mas é realmente possível fazer essa interpretação sem reduzir o que é apresentado na série? O antagonista pode se dizer o mesmo que Ellie, se declarar leal, mas é bem no fim que revela sua face integralmente. Não há nada de pai ali, nada de protetor, nada de gentil. Há apenas a face que ele demonstra para conquistar suas vítimas e a verdade terrível que elas verão somente quando já for tarde demais.

A princípio, David tenta se mostrar amigável mesmo diante das ameaças de Ellie – mas o ato não se sustenta por muito tempo.

Ellie, por sua vez, é inegavelmente violenta. Fascinada pela violência, até, como demonstrado anteriormente em seu interesse mórbido em assistir atentamente os atos mais agressivos de Joel (Pedro Pascal), ou sua atenção quase estudiosa ao cortar um infectado com sua faca apenas para explorar o que está por baixo da pele, antes de acabar com ele. Mas ela não se deleita na crueldade sem motivo contra outras pessoas. É sua própria inocência que a leva a baixar a guarda diante de David, antes dele mostrar ser o que é, e que facilmente poderia ter acabado com sua morte quando James (Troy Baker) retorna com a penicilina para a “troca” entre eles. Dizer que eles são a mesma coisa de formas diferentes não só me parece um erro, como uma redução daquelas que busca igualar vítima e abusador.

Toda a história de David sugere que o que ele é não surgiu, na verdade, com o Cordyceps destruindo o mundo como ele era até então. Não, a pior parte é a revelação de que aquilo sempre esteve ali – e, se por um acaso, ele não havia agido em seus impulsos antes, o fim da sociedade o fez se sentir livre e justificado em seu comportamento abominável. Só que não é à toa que o antagonista evoca ser o tipo de ser terrível que poderia existir de verdade. Detalhes como seu passado como professor não estão ali sem motivo. Seu método é convincente porque, provavelmente, já estava em prática muito antes do surgimento dos infectados. Ele já sabia conquistar a confiança de garotas vulneráveis. E já se deleitava com o horror e a dor que causava a elas.

Sem Joel para cuidar dela, Ellie precisa se tornar a presença ameaçadora necessária para sua própria proteção.

Não é possível saber o que Ellie seria em um mundo “normal”. Ela nunca teve a chance de conhecer um. A sobrevivência sempre foi fundamental, difícil, por vezes brutal. Mesmo assim, sempre que a vemos estender a mão a alguém ela o faz de modo aberto e sincero. Não havia segundas intenções em sua amizade com Sam (Keivonn Woodard) e Henry (Lamar Johnson). O peso do sacrifício de Tess (Anna Torv) foi visto não só em Joel, como também na garota. Lutar para sobreviver é algo que ela está mais que disposta a fazer, sim, mas não se o fim for se tornar algo tão inumano quanto David – pois, como ela mesma defende, talvez tivesse sido melhor deixar o grupo passar fome de fato.

Tudo isso leva ao grande auge do episódio, o confronto final no salão em chamas, a brutalidade de Ellie ao atingir seu adversário inúmeras vezes mesmo após sua morte. Igualar isso – seu desespero, sua dor, seu medo – e a violência proveniente daí com as ações calculadas de um predador real é reducionista. Aquele não foi um ato de deleite na violência, de insistência nela para seu próprio prazer. Ela não é o outro lado da moeda. Pode ser uma moeda diferente, com elementos em comum, mas não é a mesma. Há algo de fundamentalmente distinto no material que compõe os dois, e resumir tudo apenas a “ambos são violentos” é simplista demais para o que é apresentado na trama.

Eu sei o que o futuro guarda para Ellie (mas se você não tem conhecimento sobre os jogos, não se preocupe, prometo não dar nenhum spoiler dos games), e sei, também, que ela claramente já demonstrou capacidade e até gosto por violência antes. Mas se a intenção era mesmo colocar a garota e o pastor como personagens que se espelham, a série falha fundamentalmente ao construí-los também como vítima e predador.

Série trabalhou paralelos anteriormente de modo primoroso com Joel e Henry.

The Last of Us é capaz de bons paralelos, e já demonstrou isso com Henry e Joel, ambos cuidando de outras pessoas que dependem deles, ambos capazes de atos terríveis em nome dessa proteção. Eles de fato demonstraram algo que, em entrevistas e comentários, o cocriador dos jogos e da série, Neil Druckman, bem como o showrunner Craig Mazin declararam ser o cerne dessa história: levar o amor ao máximo, nas coisas belas que pode criar em meio a esse cenário desolador, mas também nas coisas terríveis a que pode levar em seu nome.

Joel pode julgar Henry a princípio, mas acaba vendo que eles são, de fato, mais semelhantes do que ele gostaria de admitir. Isso não funciona no oitavo episódio. Como Ellie poderia se ver naquele que, por toda a imagética do episódio, entre chamas, sangue e terror, é colocado como a personificação do inferno da personagem?

Parte visual da série não hesita em evocar o inferno para retratar situação para Ellie.

Particularmente, penso que é um desserviço a ela levar ao pé da letra a comparação apresentada (feita pelo próprio David, inclusive, em um contexto no qual ele claramente queria se colocar como um igual digno da confiança de Ellie), além de algo que não é apresentado como real objetivo da produção. Da mesma forma em que acredito que dizer que o antagonista é humanizado, ou de alguma forma mais profundo por tentar “proteger” seu grupo é empobrecer o que a série de fato apresenta.

Este é o verniz inicial apresentado por ele, sim, mas boa parte do episódio se dedica a desconstruí-lo, descascar essa camada e ver o horror por trás. Nada, ali, é por outros. Tudo é por ele próprio, não só por sua sobrevivência, mas também por sua necessidade de exercer poder. Não surpreende que alguém assim seja um estuprador, mas é surpreendente que qualquer um veja nele mais semelhanças que diferenças com Ellie. Apenas um dos dois pode ser considerado um estudo dos extremos a que a sobrevivência pode levar a humanidade. O outro apenas demonstra que os monstros reais encontram as condições perfeitas para se propagarem quando a brutalidade se torna regra ao invés de exceção.

O desconforto, no fim, não pode ser condenado quando era o objetivo o tempo todo. Que tenha sido apresentado com esse terror, não só da tensão do momento, mas que assombra mesmo depois, só demonstra a maestria com a qual foi executado.

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