Cinema brasileiro: Por que filmes nacionais ainda são tão desvalorizados?

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Cinema brasileiro: Por que filmes nacionais ainda são tão desvalorizados?

Por Jaqueline Sousa

Pare e reflita por um instante: qual foi a última vez que você foi ao cinema para assistir a um filme brasileiro por livre e espontânea vontade? Se para cinéfilos mais assíduos a resposta pode estar na ponta da língua, essa não é uma realidade facilmente disseminada entre uma parcela do público nacional. Isso porque, indo muito além de preferências pessoais ou algo similar, existe um conjunto de fatores externos e discursos pré-concebidos na nossa sociedade que continuam sufocando produções originais do Brasil, algo que faz com que muita gente nem ao menos se lembre que aqui também se faz cinema de qualidade.

É um cenário que, aos trancos e barrancos, vem mudando ao longo das últimas décadas. Basta dar uma olhadinha no sucesso que os filmes do inesquecível comediante Paulo Gustavo fizeram (e ainda fazem), ou no fenômeno Bacurau (2019), o prestigiado longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Mesmo assim, o cinema nacional segue emaranhado em nós complexos que apresentam problemas como a ausência de políticas públicas assertivas, elitismo e até um complexo de inferioridade. Mas por que, mesmo diante de uma notável ascensão, o cinema brasileiro é tão desvalorizado dentro do próprio território?

Das origens ao hoje: a desvalorização do cinema brasileiro tem história para contar

Cine Veneza, em Recife, na década de 1980.

Apesar de não existir um consenso preciso entre estudiosos sobre qual foi o filme que inaugurou o cinema brasileiro, é certo que Uma Vista da Baía de Guanabara (1898), do cineasta Affonso Segretto, e Chegada do Trem em Petrópolis (1897), de Vittorio Di Maio, ambos registros pioneiros no país, foram obras precursoras de uma arte que, com o passar dos anos, seria apropriada pelo calor e pela alegria do povo brasileiro.

São mais de 100 anos de história que seguem acontecendo diante dos nossos olhos, mas com ressalvas. Com um passado colonial nas costas, o Brasil teve que passar por mudanças radicais até chegar ao país que conhecemos hoje em dia (que ainda está muito longe de ser o ideal), uma trajetória repleta de altos e baixos que também influenciou a percepção que os brasileiros possuem sobre o cinema nacional.

A conversa começa a ficar mais dramática quando falamos sobre o poder predatório que Hollywood exerce na sétima arte. Por mais que nomes como Paulo Emílio Sales Gomes e toda a turma do Cinema Novo, por exemplo, tenham defendido ferreamente a produção nacional diante de obras estadunidenses anos atrás, não dá para negar que o cinema feito pelos Estados Unidos segue apagando filmes nacionais do circuito de exibições em salas de cinema.

Só para se ter uma ideia de como a situação se encontra crítica no momento, dados coletados pelo Sistema de Controle de Bilheteria, sob regulamentação da Ancine (via O Globo), apenas 1,4% dos brasileiros que frequentam salas de cinema, até agosto de 2023, é dedicado a exibições de filmes nacionais. O resto – 98,6% – foi às salas de cinema para assistir a produções feitas na gringa.

Comparando os dados com anos anteriores, percebe-se uma queda brusca no interesse do público por produções nacionais quando idas ao cinema ocorrem: entre os anos de 2012 e 2019, a média era de 13%.

Diante desse cenário preocupante, você pode, então, até pensar: se as pessoas não estão assistindo aos longas brasileiros nos cinemas, então deve ser porque não há tantas produções originais estreando nas telonas. Bom, errado: 96 filmes nacionais tiveram exibições em salas de cinema, segundo dados do site Filme B, desde janeiro deste ano. O problema é que, mais uma vez, eles foram pisoteados por lançamentos estrangeiros, uma situação que só se agrava com o descaso que a cota de tela vem recebendo do governo brasileiro.

O domínio hollywoodiano tira produções nacionais das salas de cinema do Brasil.

Parte de uma iniciativa que assegura o direito à cultura do cidadão, a cota de tela garante (ou ao menos garantia até 2021) que o mercado nacional reserve obrigatoriamente parte de suas exibições cinematográficas para filmes brasileiros por um determinado período de dias, uma medida que também vale para televisão.

Contudo, na prática, a cota de tela segue presa em um dilema desde 2021, ano em que perdeu sua validade em meio a um governo caótico que desprezava a cultura nacional. Neste ano, até havia a expectativa de que uma mudança no Projeto de Lei n° 3696/2023 renovaria a cota de tela, mas o cinema acabou sendo descartado da proposta após uma emenda do senador Eduardo Gomes (PL-TO).

De acordo com o senador Humberto Costa (PT-PE), em entrevista ao O Globo, a decisão foi feita com o intuito de fazer um “entendimento setorizado” para garantir “um olhar exclusivo sobre a questão do cinema”.

Mas o que tudo isso tem a ver com a desvalorização do cinema brasileiro? Simples: com a ausência de filmes nacionais nas salas de cinema do país, a força estrangeira vem esmagando cada vez mais produções feitas em nosso território que, quando chegam ao mercado, são jogadas para horários alternativos e de difícil acesso, enquanto filmes como Barbie ou Oppenheimer, apenas para citar os grandes sucessos do mês de julho, ocupam grande maioria das sessões disponíveis nos estabelecimentos por semanas consecutivas.

O mais trágico de toda a situação é que o debate envolvendo a ausência de filmes nacionais em salas de cinema não é algo novo. A cota de tela, por exemplo, foi criada em 1932, o que mostra como essa discussão vem se arrastando há décadas e décadas e mais décadas com algumas melhoras, mas sem medidas que de fato fomentam projetos no setor audiovisual nacional no que diz respeito à superação de discursos pré-estabelecidos e que estão arraigados na mente de muita gente.

Se um ranking dos 20 filmes mais assistidos do país, nos anos de 2022 e 2023, constam apenas produções internacionais, é nítido que alguma coisa muito errada vem acontecendo nos últimos tempos, principalmente se levarmos em consideração que, em 2019, pelo menos quatro longas nacionais estavam no top 20 (via Itaú Cultural).

É claro que, no meio de tudo isso, houve uma pandemia e um governo desastroso. Sem contar que, com a crise da Covid-19, diversos cinemas de rua fecharam as portas e o mercado nacional, já em desvantagem nessa corrida, acabou sofrendo ainda mais por essa realidade.

A questão é que, mesmo com tais agravantes, o cinema nacional tenta a todo custo vencer uma correnteza estrangeira que reina há anos impiedosamente. Mas, ao invés de resistir a essa influência com medidas incisivas, como a Coreia do Sul, por exemplo, que continua fazendo isso de maneira louvável, o Brasil parece estar empacado em uma eterna falácia de que brasileiro não se interessa por cinema nacional. Ora, se não há incentivo à cultura e muito menos espaço para filmes brasileiros no mercado, como as pessoas irão genuinamente se interessar por obras que saíram de seu próprio país?

Elitismo, complexo de inferioridade e desvalorização cultural: qual é o futuro do cinema brasileiro?

Falar do futuro do cinema brasileiro é uma ação complexa.

Que é preciso investimentos que protejam o mercado nacional, além de incentivos para que os profissionais da área continuem se especializando e abraçando oportunidades no setor, isso fica nítido quanto mais você pensa sobre o cinema brasileiro. Mas e quando a conversa engloba fatores sociais e econômicos?

Se você é um visitante assíduo de cinemas, provavelmente deve ter percebido um aumento considerável no preço de ingressos nas principais locações do país. A percepção não está errada: segundo dados da Ancine (via Itaú Cultural), a média de valores atualmente está na casa dos R$ 19, um número maior do que a média de 2019, que era de R$ 15.

Essa é apenas a pontinha do iceberg que escancara o elitismo que permeia a área do cinema, uma pauta que, apesar de ser bastante discutida, ainda não possui uma solução evidente e satisfatória. Afinal, como falar para as pessoas irem ao cinema se as condições econômicas de cada uma não são levadas em consideração?

Uma pessoa que sobrevive com um salário mínimo de R$ 1.320 dificilmente terá espaço, tempo ou uma economia necessária para frequentar salas de cinema com frequência, uma realidade que não atinge as classes mais altas do país. Tal contexto adiciona mais uma camada de complexidade no cinema brasileiro, já que não basta apenas incentivar a população a consumir esse tipo de produção cultural se não existem iniciativas que coloquem o público de baixa renda dentro das salas de cinema, claro, com preços justos ou ações gratuitas.

Não é nem que projetos que visam ingressos mais baratos não existam: a Cinemark, uma das maiores redes de cinema do Brasil, juntamente com outras empresas do país, conseguiu gerar uma forte comoção no início deste ano com a volta da Semana do Cinema, um evento que colocou ingressos à venda por um valor único de R$ 10, além de descontos em combos de pipoca e refrigerante (via CNN).

Porém, preço de ingresso não é o único fator decisivo no que diz respeito ao afastamento entre o público e as produções nacionais. Além dos vários aspectos citados, existe um complexo de inferioridade, conhecido também como o popular termo “síndrome de vira-lata”, que paira sobre o Brasil desde que os portugueses chegaram aqui.

Bacurau (2019) foi um fenômeno de crítica e de público no Brasil.

Afinal, o discurso de que “cinema brasileiro é ruim” não nasceu da noite para o dia. Foi preciso um longo e deteriorante processo de apagamento da cultura nacional, que foi substituída por um estrangeirismo agressivo (principalmente o estadunidense) que colocou na cabeça de muita gente que “cinema de verdade só se faz lá fora”, para transformar nós mesmos em nossos piores inimigos.

É uma inferioridade sem tamanho que, mesmo que o cinema brasileiro tenha nomes prestigiados como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, parece que isso não é o suficiente para mudar o consenso de que filmes brasileiros não possuem qualidade ou relevância. E, ainda que produções como Bacurau ganhem reconhecimento na gringa, o complexo é tão gritante que, para muitos, um longa-metragem nacional só vale ser reconhecido se ele tiver aprovação internacional.

O mesmo acontece quando atores brasileiros, como Wagner Moura, Rodrigo Santoro e Bruna Marquezine, a mais recente integrante do grupo de artistas nacionais que fazem sucesso no exterior, participam de projetos estrangeiros. Não que seja errado, muito pelo contrário – o reconhecimento é sempre bem-vindo. Mas o problema está em enxergar a “validação” de suas carreiras a partir de um viés internacional, como se isso fosse algum tipo de vitória para a cultura brasileira como um todo. São conquistas pessoais de cada artista, sim, mas isso nunca deveria servir como parâmetro para desmerecer a trajetória de cada um dentro de seu país de nascença.

Diante de todas essas questões, pensar no que o futuro reserva para o cinema brasileiro também é uma ação bastante complexa. A história mostra que, por mais que se acredite que não, existe sim um interesse do público por cinema nacional, claro que sempre levando em consideração seus recortes sociais, políticos e econômicos.

Por outro lado, a ausência de mais projetos, iniciativas culturais e investimentos no setor audiovisual brasileiro continua afastando as pessoas das salas de cinema, uma perda que não afeta somente a riqueza de projetos que circulam no mercado interno mensalmente, mas que também impede com que muita gente entre em contato com suas próprias origens através de uma arte tão identificável como o cinema.

É aquele famoso “digo que não gosto antes mesmo de provar” que sempre acaba caindo no tal complexo de inferioridade e na resistência em consumir produções que não venham do eixo hollywoodiano. A notícia boa, mesmo em meio a tantos obstáculos, é que o cinema brasileiro continua resistindo a uma intensa guerra cultural que, por mais que o lado mais forte pareça estar sempre um passo à frente, ele nunca terá aquilo que faz o cinema nacional ser tão precioso: ele é nosso.

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