Sobre os comentários de Bill Maher e quem se acha melhor por não ler quadrinhos!

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Sobre os comentários de Bill Maher e quem se acha melhor por não ler quadrinhos!

Por Lucas Rafael

Ao criticar o legado de Stan Lee e afirmar que “uma cultura que pensa que quadrinhos e filmes de quadrinhos são meditações profundas acerca da condição humana é uma cultura estúpida pra caralho“, o comediante Americano Bill Maher tocou em pontos sensíveis. Então eu pensei em escrever este texto como retaliação, mesmo que ele nunca vá ler. Em outra parte de sua declaração, Maher afirmou  que “para pessoas, tipo, ficarem nervosas com isso apenas prova o meu ponto.” Então ao invés de ficar nervoso com isso, eu vou tentar desmascarar o argumento pífio que Maher construiu numa tentativa de chamar a atenção (se for isso, ele conseguiu). O bom é se tratar de uma declaração tão rasa que a gente não precisa nem ir tão longe para abatê-la.

Maher parece atacar quadrinhos devido à sua relação com desenhos, como se o texto estar apoiado sobre imagens vibrantes automaticamente invalidasse o valor cultural de uma história. Você pode conferir a declaração do comediante aqui, e suas respostas às críticas aqui

Aí por 2005, o time literário da revista TIMES compilou uma seleção dos melhores livros escritos em língua inglesa desde 1923. Podemos encontrar Watchmen lá no meio, como representante único das graphic novels. A obra de Alan Moore ilustrada por Dave Gibbons conversava de maneira ímpar com as ansiedades da guerra fria, tecendo uma teia de alegorias culturais da era Nixon nos EUA e o pavor nuclear através de textos apoiados em imagens vibrantes.

A angústia, a crítica e o comentário presentes em Watchmen são tão válidos quanto, como afirmou Maher, “ler livros de garotos grandes, sem os desenhos.

Dr. Manhattan em um momento de reflexão.

O que parece ter sabotado todo o argumento do comediante é a falta de intimidade com a mídia dos quadrinhos. Pense em um filme que você odeia, que você julga nunca precisar ter existido, um desperdício do seu tempo e do dinheiro do estúdio que o realizou. Pense que você assistiu apenas ele na sua vida, então colocou todos outros filmes na mesma caixa e taxou o veículo do cinema como culturalmente pobre. É mais ou menos isso que Maher parece fazer com quadrinhos.

Toda mídia tem seu lixo e seu luxo, dos filmes até as HQs, séries e jogos eletrônicos. E isso é ridiculamente óbvio, mas parece ser um fator vital de ser apontado devido aos comentários de Maher.

Não é só Watchmen que compõe o panteão de quadrinhos “pro homem que pensa”, ou coisa do tipo. A Marvel e a DC já publicaram títulos com comentários sociais dignos de dissecação, pintando, através dos “deseinhos”, retratos de ansiedade social legítimos (alô, X-Men).

A gente nem precisa ir tão longe do Brasil para encontrar algo digno da sua atenção como documento cultural na forma de quadrinhos. Aqui, temos o premiado Lourenço Mutarelli (que mais tarde migrou para a literatura, mídia sem desenhos, inclusive), com quadrinhos como Diomedes, que anseiam tocar em questões existenciais através de suas páginas. Se eles conseguem ou não passam de filosofia de botequim, fica ao leitor decidir, mas dar uma margem interpretativa pra reflexão já é algo muito importante, que não é alcançado por qualquer livro.

Diomedes, de Lourenço Mutarelli

Art Spiegelman escreveu uma história em quadrinhos sobre sua família de origem Judaica sobrevivendo às intempéries da era nazista. Um retrato histórico deste nível casou perfeitamente com a linguagem dos quadrinhos, e poderia dificilmente ter sido contado com tanta sutileza e emoção através de outra mídia.

Maus, de Art Spiegelman. Um exemplo do potencial narrativo/visual dos quadrinhos.

Quadrinhos são algo trabalhoso de se conceber. Existem inúmeras reflexões cabíveis na melhor maneira de entregar uma história neste formato. Como os artistas exploram a disposição dos painéis, como o que é enquadrado dentro deles contribui para a narrativa, os detalhes presentes nos desenhos que conseguem ser tão vívidos quanto nos filmes. Quadrinhos são algo único, bonito e trabalhoso. É só olhar o trecho de Maus, acima.

Maher também parece descartar o valor desta forma como mídia formativa. Mídia formativa é tudo aquilo que você consome quando novinho/novinha, que contribui para sua percepção de mundo e amadurecimento pessoal.

Stan Lee nunca teve dúvidas de que escrevia, principalmente, para crianças. Suas histórias com desenhos de cores vibrantes dialogavam com a fase lúdica deste público. E quando você escreve para crianças, a responsabilidade de não falar besteira através da sua obra aumenta. Stan Lee entendia isso. É por isso que cada história cunhada sob sua assinatura, cada personagem, trazia em si uma lição. Para um adulto, pode ser algo extremamente óbvio, mas para uma criança, era essencial para sua compreensão do mundo. As histórias em quadrinhos de Lee serviam como uma modernização das fábulas de antigamente, trazendo através de universos fantásticos e lúdicos (animais que falavam, antes, homens e mulheres em trajes coloridos, agora) a nutrição cultural e existencial que o desenvolvimento infantil pede. Maher afirma que “quadrinhos eram para crianças. Você crescia e ia ler livros de garotos grandes, sem os desenhos.” Mas, especialmente hoje em dia, parece que muito adulto ainda tem o que aprender com os livros de garotos pequenos, com desenhos, assinados por quadrinistas como Lee.

Eu li, especialmente, muito Homem-Aranha quando pequeno. Ainda leio hoje. E sem dúvidas, os dilemas de Peter Parker, sua vida profissional, amorosa e heroica, ficaram comigo até a data presente. Não acho que Maher queira que uma criança saía do berço lendo Sartre, Hegel, Nieztche ou sei lá que diabo ele julga “sofisticado”, mas descartar completamente a fibra moral das HQs é tolice.  

No fundo, Maher parece ser o amigão que usa um óculos parecido com o do Woody Allen e que se acha esperto demais para ver filminho de herói. Todo mundo sabe que esse tipo de gente só quer atenção por se achar mais esperta, querem subir num pedestal do ego por se recusarem a consumir o mesmo que a massa. Eles dormem melhor assim à noite.

Não vou mais me estender aqui por medo de provar o ponto de Maher, afinal, até agora foram cerca de 873 palavras dedicadas à declaração dele. Se isso importa ou não passa de dor de cotovelo, cabe a você que está lendo decidir.

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