[CRÍTICA] Nós – As duas lâminas de uma tesoura!

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[CRÍTICA] Nós – As duas lâminas de uma tesoura!

Por Gus Fiaux

Após causar um rebuliço com seu primeiro longa-metragem, Corra!, o prestigiado diretor Jordan Peele volta aos cinemas com seu mais novo filme, Nós. Cheio de simbologia e com uma trama de cair o queixo, o longa era um dos filmes de horror mais aguardados do ano. E agora, você pode conferir a crítica!

Créditos: Universal Pictures

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Ficha Técnica

Título: Nós (Us)

Ano: 2019

Data de lançamento: 22 de março (Brasil)

Direção: Jordan Peele

Duração: 116 minutos

Sinopse: A serenidade de uma família se torna um caos quando um grupo de doppelgängers começa a os aterrorizar.

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Nós - As duas lâminas de uma tesoura!

"Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, do qual não poderão escapar; e eles clamarão por mim, mas eu não os ouvirei." Essa passagem bíblica se encontra em Jeremias 11:11, e você precisa estar bastante atento a ela quando for assistir a Nós, o mais novo filme de Jordan Peele, aclamado cineasta por trás de Corra!.

Em seu segundo longa-metragem, Peele mostra que, apesar de ter crescido em meio à comédia, encontrou um novo lar no horror. Nós é um terror genuíno, com momentos de gelar a espinha e uma atmosfera claustrofóbica - mas sem perder de vista os comentários sociais que tornaram sua estreia diretorial tão premiada.

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Falar de Nós sem dar spoilers é uma tarefa complexa (porque o próprio filme também é uma obra muito complexa). A premissa básica, vista na sinopse e nos trailers, é que uma família segue sua vida normalmente, sem problemas. No entanto, tudo vira de cabeça para baixo quando eles são atacados por versões sinistras e distorcidas de si próprios.

Falar qualquer coisa além disso pode comprometer a experiência única e sensacional que esse filme proporciona. Mais uma vez, Jordan Peele conseguiu fazer uma obra que está constantemente alimentando o público com a ideia de que as coisas são simples - apenas para que tenhamos o tapete puxado debaixo de nossos pés logo em seguida.

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Isso não quer dizer que Nós seja um filme complicado ou difícil de se entender. Na verdade, uma vez que todas as peças estão dispostas no tabuleiro narrativo, a história flui com uma leveza impressionante. No entanto, ao redor de toda a trama, há uma camada de simbologia, dualidade, reflexão e até mesmo auto-crítica.

É fantástico como o longa consegue usar alguns signos como representantes metafóricos em momentos bem específicos. Se você já bateu o olho em algum cartaz ou teaser do filme, sabe que coelhos, tesouras e máscaras são elementos cruciais - e por mais que eles não sejam explicados de forma mastigada, sua presença interfere diretamente na trama.

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Mas vamos ao elenco. Lupita Nyong'o oferece aqui uma das melhores interpretações de sua carreira. Ela consegue destrinchar de forma primorosa os dois lados dessa psiquê única, apresentando uma mãe carinhosa e cuidadosa, mas também uma assassina excêntrica cuja voz é capaz de causar arrepios em toda espinha.

A performance da atriz pode até ser comparada com o que Toni Collette fez em Hereditário, não por similaridades narrativas, mas pela entrega física, psicológica e corporal que Nyong'o faz ao papel. É uma pena que, assim como Collette, ela deve ser esnobada de premiações de grande porte, que ainda tratam o gênero do terror com um preconceito infantil.

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A atriz também encontra um elenco de apoio sólido e firme. Por mais que ela seja a estrela do filme, Nós garante seu espaço graças à leveza que Winston Duke traz para seu personagem, tornando-se uma espécie de alívio cômico. As crianças, vividas por Shahadi Wright Joseph e Evan Alex, convencem e conseguem transpor muito bem o pavor da situação.

Outros nomes também marcam presença, ainda que mais escanteados - afinal, o filme é sobre como essa família específica desce em uma espiral de loucura. Dentre os coadjuvantes, Elisabeth Moss é pouco aproveitada, mas rouba cada cena em que aparece, mostrando-se uma das atrizes mais competentes de nossa geração.

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Em relação à técnica, Nós chega um degrau próximo da perfeição. O grande destaque vai para a cinematografia de Mike Gioulakis, que consegue incorporar um excelente trabalho de luz e sombras, além de criar um senso de atmosfera que prioriza a tensão crescente aos jump scares clichês que não contribuem para a claustrofobia onipresente, mesmo em externas.

O design sonoro do filme também é digno de aplausos. A trilha sonora cria uma ambientação hostil, onde tudo pode ruir a qualquer segundo. Além disso, há um uso brilhante de canções ao longo do filme, com destaque para uma cena onde ouvimos a clássica Fuck tha Police, do N.W.A., uma sequência com muitas conotações cômicas e contrastantes.

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No entanto, nada disso seria possível sem o plano-geral que é o roteiro. Temos aqui um caso onde a parte técnica e a narrativa andam de mãos dadas quase que inteiramente, o que gera uma coesão cinematográfica magistral. Infelizmente, o terceiro ato do filme - que é grandioso e megalomaníaco - acaba tendo alguns pequenos deslizes.

O maior deles talvez seja a necessidade da exposição. O filme constrói um senso de desesperança tão forte e consegue passar pistas tão sutis que algumas explicações parecem apenas reafirmar o óbvio. Além disso, há um grande plot twist que poderia ser deixado para o inconsciente do espectador, em vez de ser revelado de uma forma tão previsível.

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Se você estiver disposto a desconsiderar isso, Nós se torna um filme perfeito. É um terror que não necessariamente causa medo, mas que brinca com as aflições e com o emocional de seu público, fazendo com que todos fiquemos grudados na cadeira desde a primeira até a última cena, fixados na tela mas com receio do que está por vir.

É a prova de que Jordan Peele fez sua casa no horror, e que em algumas décadas, será lembrado como um dos grandes cineastas do gênero. Nos últimos dias, muitos tem comparado o diretor a Alfred Hitchcock, e por mais que eu ache essa visão um pouco equivocada (em breve, teremos um texto sobre isso), consigo entender os motivos e a comoção.

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Se você é fã de Corra! e gosta de filmes de terror que te chacoalham do avesso, fazendo reavaliar os recantos mais sombrios e asquerosos de sua alma, Nós é uma excelente pedida - justamente porque o próprio filme insiste em nos mostrar como nós mesmos somos os nossos piores inimigos. É uma obra complexa e simbólica.

Mais do que isso, é um filme cujo impacto não vai evanescer tão cedo. Em semanas, meses, anos e décadas, será um filme discutido pela quantidade de subtexto que se esconde em cada detalhe mínimo, seja na roupa de uma das personagens, no cenário ou em diálogos muito bem polidos. Jordan Peele acertou mais uma vez - e Nós é sua mais nova obra-prima.

Nota: 4,5/5