Crítica – A Cor Púrpura busca gentileza em meio à injustiça com nova versão vibrante

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Crítica – A Cor Púrpura busca gentileza em meio à injustiça com nova versão vibrante

Por Jaqueline Sousa

É em meio às sombras de um quarto simples em A Cor Púrpura (1985) que as jovens Celie e Nettie sonham com a liberdade. Com direção do mestre Steven Spielberg (Tubarão), a primeira adaptação do clássico homônimo da literatura escrito por Alice Walker, vencedora de um prêmio Pulitzer pela obra, explora a intrínseca relação entre duas irmãs sufocadas pelo poder masculino e pela desigualdade social no começo do século XX.

Doloroso e angustiante, o filme de Spielberg carrega consigo o peso de adaptar uma obra complexa e repleta de nuances, um desafio que o A Cor Púrpura de 2023 assume com ousadia e originalidade. Dirigido por Blitz Bazawule (Black is King), o musical inspirado na famosa peça da Broadway segue o mesmo caminho que a primeira adaptação, mas de um jeito único. Com canções emocionantes e performances magistrais, o novo filme dialoga com questões da atualidade a partir da jornada de uma mulher negra em busca de seu próprio significado de liberdade sem deixar de lado a essência da obra de Walker.

Ficha técnica

Título: A Cor Púrpura

 

Direção: Blitz Bazawule

 

Roteiro: Marcus Gardley

 

Data de lançamento: 8 de fevereiro de 2024

 

País de origem: Estados Unidos da América

 

Duração: 2h 21min

 

Sinopse: Separada da irmã e filhos, Celie enfrenta muitas dificuldades na vida, incluindo um marido abusivo. Com o apoio da cantora Shug Avery e sua enteada, Celie encontra uma força extraordinária nos laços inquebráveis de um novo tipo de sororidade.

Pôster de A Cor Púrpura.

Irmãs são para sempre

Era início do século XX, e as irmãs Celie (Phylicia Pearl Mpasi/Fantasia Barrino) e Nettie (Halle Bailey/Ciara) sobreviviam à brutalidade do Sul dos Estados Unidos com a única coisa que enchia seus corações de vida: a vontade de ser livre. A partir do olhar ingênuo e esperançoso de Celie, a trama percorre cerca de 40 anos na vida da jovem, uma mulher negra, pobre e traumatizada pelos abusos do padrasto sofridos dentro da própria casa.

Mas quando Celie é forçada a se casar com Albert (Colman Domingo), ou Mister, apelido pelo qual ele é conhecido nas redondezas, sua situação piora gradativamente. Violento, o homem enxerga Celie apenas como sua empregada, promovendo uma série de abusos, agressões e sofrimentos físicos e psicológicos à esposa diariamente. Tudo se deteriora ainda mais quando sua irmã Nettie é bruscamente tirada de sua vida, deixando-a sozinha e indefesa na cova dos leões.

A Cor Púrpura acompanha a dolorosa separação de duas irmãs durante o início do século XX.

É a partir do ponto de vista de Celie e sua busca silenciosa por liberdade que A Cor Púrpura, independente do formato, trata de questões bastante sensíveis e dolorosas, como a violência contra mulheres, preconceitos raciais e a luta de classes em meio a um Estados Unidos que, mesmo com um evidente crescimento econômico no início do século, passaria por uma forte crise posteriormente, além de ser uma nação impulsionada por uma sociedade desigual e preconceituosa que ainda existe nos dias de hoje. E muito disse vem juntamente com a importância que as cartas possuem na trama.

Como o nosso Central do Brasil (1998) de Walter Salles bem retratou, existe uma vulnerabilidade no ato de escrever uma carta que nenhuma mensagem de texto dos dias atuais é capaz de transmitir. Para Celie, uma jovem semianalfabeta que enxergava no aprendizado uma maneira de se libertar de limitações impostas (e injustas) a ela, eram justamente essas palavras escritas, assim como a paixão por histórias que a lembravam da falecida mãe, que traziam conforto em um mundo hostil.

O amor por Nettie, a irmã desaparecida, resumia-se, então, na expectativa de receber uma única carta que a fizesse ter a certeza de que não estava sozinha e de que, em algum lugar do mundo, ainda existia alguém que a olharia com gentileza ao invés de desprezo. É uma relação sufocada pela distância e pela injustiça, o que transforma a correspondência em um aspecto central do enredo, algo que tanto o filme de Spielberg quanto o de Bazawule conseguem (re)adaptar para dentro de seus universos particulares.

Fantasia Barrino interpreta Celie, uma mulher silenciada pelos abusos e pela opressão do lugar onde vive.

É praticamente impossível falar do A Cor Púrpura de 2023 sem traçar paralelos com a consagrada adaptação de Spielberg, filme que marcou a carreira de Whoopi Goldberg com sua poderosa performance como Celie. Apesar das duas abordagens terem propostas completamente distintas uma da outra, é nítido que o musical roteirizado por Marcus Gardley presta uma certa homenagem à adaptação original, recriando algumas sequências pertinentes ao conjunto da obra, como quando a destemida Shug Avery, personagem interpretada por Taraji P. Henson no novo filme e vivida por Margaret Avery no longa dos anos 80, joga uma bandeja recheada de comida na parede depois que o Mister de Colman Domingo tenta agradar a amante sem a ajuda de Celie.

Os paralelos existem, mas isso não significa que o musical tente replicar o que Spielberg concretizou com sua adaptação. Por já se inserir em um gênero tão imaginativo, o novo A Cor Púrpura reinterpreta a clássica obra de Alice Walker com cenas coloridas, vívidas e originais, que são acompanhadas de canções vibrantes e expressivas. Além disso, o filme ainda toma a liberdade criativa de adaptar momentos decisivos da história original a partir de uma nova perspectiva, como a triste separação de Celie e Nettie, por exemplo, que ganha uma ambientação diferente da maneira como a cena ocorre no filme de Spielberg.

Musical traz uma versão mais vibrante e colorida do clássico escrito por Alice Walker.

Mesmo quando o filme de 2023 falha em dar um encadeamento rítmico aos acontecimentos da narrativa com naturalidade, ou quando certas motivações de personagens não parecem justificáveis em relação às suas ações, o musical consegue contornar esses problemas com sua originalidade e força performática, mostrando como uma mesma história pode ganhar versões completamente distintas dependendo de quem a comanda.

Eu estou aqui

Como uma obra de sua época, o novo A Cor Púrpura é bastante incisivo no que diz respeito às temáticas feministas. Desde canções que reafirmam o poder da voz feminina na sociedade atual até diálogos mais expositivos, o longa conta com performances impressionantes do trio de protagonistas – Fantasia Barrino, Taraji P. Henson e Danielle Brooks, esta última indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por sua interpretação de Sofia, papel que foi de Oprah Winfrey no filme de Spielberg.

Não é exagero dizer que Danielle Brooks tenha conquistado uma posição mais evidente na narrativa do que a de Winfrey, e muito disso, claro, vem das diferentes visões entre as duas adaptações. Brooks, com a vivacidade e esperteza de sua Sofia, rouba qualquer atenção quando entra em cena, demonstrando um equilíbrio impressionante em sua performance. É praticamente impossível desviar o olhar dela – é um efeito magnético.

Fantasia Barrino, que reinventa Celie à sua própria maneira, sem deixar a essência da personagem de lado, por sua vez, é a alma de A Cor Púrpura. Seja em sua ingenuidade, mesmo diante de todas as brutalidades as quais sofreu, ou na esperança de reencontrar a irmã perdida algum dia, a Celie de Barrino tem uma força silenciosa que, adormecida, encontra incentivo para despertar ao lado de outras mulheres, como a Shug de Taraji P. Henson, personagem importantíssima para que Celie finalmente complete sua jornada de autodescoberta e aceitação no final da narrativa. Embora o problema de ritmo do musical interfira no aprofundamento de motivações ou da complexidade dessa relação, é perceptível que o laço criado entre as duas serve como incentivo para o desenvolvimento de Celie, que passa a desejar uma nova forma de se viver a vida, longe de todas as crueldades enfrentadas por ela dentro de casa.

O poder das mulheres negras é ponto crucial de A Cor Púrpura.

Logo, assim como o filme de Spielberg, o musical de 2023 entende a importância de centralizar as figuras femininas, deixando-as livres para seguirem seus próprios caminhos na narrativa à medida que elas encontram em outras mulheres a força necessária para sobreviver em um mundo hostil, brutal e abusivo. Cada aspecto da narrativa colabora para que A Cor Púrpura não somente evidencie como a união feminina é importante para a encontrar a liberdade em uma sociedade opressora, como também ressalta o poder de mulheres negras em suas jornadas individuais e coletivas, destacando de maneira sincera como cada mulher enfrenta uma batalha silenciosa para conseguir entender si mesma e o mundo ao seu redor.

O novo A Cor Púrpura, então, reinventa um clássico sem deixar de respeitar o material original, readaptando a jornada de Celie para dialogar com questões vigentes nos dias atuais enquanto aposta em uma proposta diferente (e até mesmo ousada para a temática difícil da obra de Alice Walker) para justamente trazer uma nova perspectiva para a heroica história da protagonista, uma mulher que, apesar de tudo, nunca deixou de ter esperança e gosto pela liberdade.

Nota: 4 de 5.

A Cor Púrpura estreia no dia 8 de fevereiro nos cinemas brasileiros.

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