Crítica: Segredos de um Escândalo seduz com uma desconfortável fofoca que é impossível de ignorar

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Crítica: Segredos de um Escândalo seduz com uma desconfortável fofoca que é impossível de ignorar

Por Gabriel Mattos

Apesar de polêmicos, escândalos íntimos costumam render boas histórias, seja na música ou no cinema. O novo longa de Todd Haynes, consagrado cineasta do New Queer Cinema, não é exceção à regra. Estrelado por Natalie Portman, Segredos de um Escândalo (ou May December) impressionou no Festival de Cannes, arrepiou no Festival do Rio e promete ser uma das grandes apostas do Oscar 2024 — tudo por ousar contar uma história perturbadora da forma mais canalha possível.

Ficha técnica

Título: Segredos de Um Escândalo (May December)

 

Direção: Todd Haynes

 

Roteiro: Samy Burch e Alex Mechanik

 

Data de lançamento: 18 de janeiro de 2024

 

País de origem: Estados Unidos da América

 

Duração: 1h 53min

 

Sinopse: Um atriz convive com uma ex-criminosa reinserida na sociedade para entender como sua mente funciona.

Pôster de Segredos de Um Escândalo (Créditos: Netflix)

Um quebra-cabeças elegante e perturbador

A trama acompanha uma atriz consagrada, Elizabeth Berry (Portman), que aceitou protagonizar um filme inspirado em um caso controverso: um romance pedófilo de uma mulher mais velha, Gracie (Julianne Moore), com um menino de 13 anos, Joe (Charles Melton). Para entregar verdade em sua atuação, a estrela decide morar com esta atípica família, que se reestruturou em um clássico lar americano quase vinte anos depois.

Tudo nessa situação exala um forte desconforto. De um lado, há um sentimento de intrusão inevitável de estar inserido na rotina de uma casa que não lhe quer ali. Do outro, um incômodo moral de observar o futuro quase impune de uma pedófila convicta. E conforme os personagens vão chafurdando neste espaço cinzento, o filme faz um trabalho muito competente de não prender essas sensações à tela e projetar o mesmo sentimento importuno diretamente para o público.

Haynes cria um ambiente quase hipnótico e sedutor, construído não só pela atuação estrondosa da dupla Portman e Moore, como também de uma soma de fatores técnicos utilizados de uma forma muito consciente. O jogo de câmera elegante, a trilha sonora imponente, o roteiro afiado: tudo converge para o mesmo caminho, prendendo a atenção em um ritmo alucinante. Uma mistura perigosa que poderia resultar em uma forte repulsa do espectador, devido ao tema polêmico, mas acaba sendo como um vício secreto. Por mais que pareça muito errado, é impossível desviar o olhar.

Navegando pelo passado de Gracie de forma bastante parcial, por meio de relatos de filhos, do marido, do advogado e pessoas com diferentes perspectivas sobre aquela mulher, o roteiro é como um delicioso quebra-cabeça. Nem toda peça encaixa onde se espera ou da forma que imaginamos, mas de uma forma ou de outra, acaba somando para construir a imagem de quem realmente é a mulher perseguida pelos tablóides. Dessa forma, o longa convida o público, com suas próprias subjetividades, a desvendar ao lado da personagem de Natalie Portman quem é verdadeiramente a matriarca de uma família tão conturbada.

Enquanto este quadro se constrói lentamente, o filme cria uma viciante sensação de corda bamba, em que a opinião do espectador é manipulada entre a empatia e a repulsa por esta figura tão controversa. Nesta tarefa, a trilha sonora é uma grande aliada do diretor. Sempre que um sentimento de possível conforto começa a se instaurar, surge uma melodia pesada, digna de um filme de terror, para lembrar do perigo iminente. Um bruto lembrete para não baixar a guarda mesmo quando a personagem de Moore mostra o seu lado mais sensível.

Muitas cenas também se beneficiam de um enquadramento muito estratégico que foge do comum para garantir que o público esteja consciente de cada mínima reação nas expressões dos atores a todo o momento. Espelhos são muito utilizados não só para refletir como as principais personagens são um reflexo uma da outra, mas também para simbolizar que estamos encarando a verdadeira face delas. A forma como cada personagem reage em um diálogo conta metade da história por aqui. Natalie Portman, por exemplo, sempre precisa demonstrar um controle perto da personagem de Julianne Moore para não desencorajar a mulher a ser sua versão mais autêntica, mesmo ao presencia-la humilhando os filhos ou romantizando detalhes perturbadores de sua relação com um então menor de idade.

Natalie Portman e Julianne Moore são espelhos de uma perigosa obsessão

Existe um charme irresistível na atuação de Moore, muito graças às muitas camadas de sua personagem. A atriz parece sempre esconder uma ameaça ou até um certo rancor por trás de cada sorriso. Afinal, Gracie equilibra os contrastes de alguém que cometeu este ato condenável no passado e, no presente, faz de tudo para manter as aparências de sua família perfeita. De certa forma, está sempre atuando, tentando esconder os aspectos sombrios de quem realmente é. E Moore consegue entregar este equilíbrio delicado entre alguém que parece iludida em suas próprias mentiras e ao mesmo tempo sob completo controle de sua malícia. Lembra uma versão aprimorada de Elizabeth Olsen em WandaVision. Um verdadeiro espetáculo que não se ofusca pelo furacão Natalie Portman.

De mocinha compreensiva a uma mestra da enganação, Portman encarna uma personagem que se adapta completamente para extrair o melhor de cada situação. Uma verdadeira camaleoa que mostra toda a versatilidade da atriz. Presente na grande maioria das cenas, Portman consegue ao mesmo tempo desaparecer entre o cenário, mascarando a sua presença, e roubar os holofotes, demonstrando uma química orgânica com quem quer que seja. 

Mesmo nos momentos em que não tem com quem contracenar, existe uma troca intrigante com o público, como se fossem seus confidentes. Impressiona a maneira como incorpora sutilmente os trejeitos de Julianne Moore, borrando a noção de identidade de sua própria personagem. Definitivamente uma atuação com potencial de chamar a atenção da Academia para uma possível nomeação ao Oscar 2024.

Ousando mergulhar de cabeça no lado mais pútrido de um crime sórdido, Segredos de Um Escândalo consegue levantar discussões que costumam ser esquecidas, como o drama dos jovens garotos que muitas vezes sequer entendem que são vítimas de um abuso. Sem pesar o tom ou deixar de lado o desconforto inevitável deste assunto, Haynes constrói um suspense viciante e incômodo que brilha com a atuação formidável de Natalie Portman e Julianne Moore.

Nota: 5/5

Segredos de Um Escândalo chega aos cinemas brasileiros em 18 de janeiro de 2024.

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