Crítica — One Piece: A Série, Temporada 1

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Crítica — One Piece: A Série, Temporada 1

Por Gabriel Mattos

Criado por Eiichiro Oda, o mangá de One Piece conquistou uma legião de fãs pelo seu jeito malandro de contar sua história — sem pressa, com muito carisma e sem levar nada muito a sério. Não é à toa que a saga de Monkey D. Luffy acumula milhares de capítulos sem perder o interesse do público: é uma narrativa que usa as estruturas batidas do gênero shounen a seu favor para falar de assuntos importantes. Traduzir essa irreverência para o formato de série live-action era um desafio quase impossível que a Netflix superou com folga em One Piece: A Série.

Ficha técnica

Título: One Piece: A Série (One Piece)

 

Criação: Steven Maeda e Matt Owens

 

Baseado em obra de: Eiichiro Oda

 

Direção: Marc Jobst, Tim Southam, Emma Sullivan e Josef Kubota Wladyka

 

Ano: 2023

 

Emissora/Streaming: Netflix

 

Número de episódios: 8 (Temporada 1)

 

Sinopse: Em um mundo marítimo, um jovem capitão pirata parte com sua equipe para alcançar o título de Rei dos Piratas e descobrir o tesouro mítico One Piece.

Zarpando rumo ao topo

Assim como a obra original, a nova produção é uma espirituosa aventura com uma roupagem bem colorida e irreverente que esconde uma surpreendente profundidade. Navega com naturalidade por temas bastante diversos, desde aqueles com forte teor social, como companheirismo e lealdade, aos filosóficos, como a ideia de livre arbítrio, e até mesmo políticos, como estruturas de racismo e a luta por liberdade. Tudo isso sem sair do clima leve que acompanha o jovem, bobo e inocente pirata Luffy por onde passa.

Em oito episódios, a trama adapta a Saga de East Blue, que acompanha os primeiros passos da jornada desse herói tão otimista e inconsequente que sonha em se tornar o Rei dos Piratas. Cada arco foca em introduzir um novo personagem, mas quem brilha a todo o momento é mesmo o capitão deste navio: Monkey D. Luffy. Sua personalidade espontânea e ingênua é a origem do carisma inerente da série, presente nas versões anteriores e que também transborda na versão live-action.

Dá pra dizer que o maior tesouro da produção é o seu carisma, carregado por Iñaki Godoy. O ator latino, que dá vida ao protagonista, incorporou na alma seu espírito zombeteiro, que traz uma pureza quase sobre humana — nada comum nas séries ocidentais — mas que funciona graças ao comprometimento de Godoy. Cada besteira que o personagem faz é acompanhada de um sorriso bobo tão genuíno que desarma qualquer baixo astral. E contrasta bastante com o olhar sério que surge quando o assunto é defender seus amigos. Em um encaixe surreal, Godoy se comporta exatamente como o herói da obra original, independente da situação. É como se o ator realmente tivesse nascido para este papel.

O mesmo pode ser dito de basicamente todo o elenco principal. Não é uma tradução tão direta do mangá para as telas, como no caso de Godoy, mas Emily Rudd e Mackenyu  também brilham na pele de Nami e Zoro. A navegadora é o coração dramático da temporada, com um conflito interno com seu passado, e o espadachim é quem mais brilha nas cenas de ação, com uma coreografia impactante. A dupla também ganhou uma relação mais próxima na adaptação e um peso dramático maior em sua história, mais condizente com a linguagem de uma série live-action, o que só enriqueceu ambos os personagens.

Existe uma sensibilidade em entender exatamente o que é necessário alterar na obra de Eiichiro Oda. Adaptar da melhor maneira possível a insanidade que só um mangá poderia proporcionar para esta mídia completamente diferente, que são as séries live-actions ocidentais, é o que guiou a produção para o sucesso. One Piece: A Série entra com tranquilidade no hall das melhores adaptações da história, ao lado de Scott Pilgrim Contra o Mundo e Super Mario Bros. — O Filme, por entender e respeitar exatamente a essência do meio original, sem ter vergonha de ser o fruto das ideias de um mangá. 

Pelo contrário, esta adaptação não tenta nadar contra a correnteza e aproveita para brincar com suas raízes. Ora de forma extravagante, como nos cartazes de procurado que são rasgados por seus respectivos piratas, ora de forma mais técnica, como nas lutas que trazem um jogo de câmera fortemente inspirado nos painéis dos quadrinhos japoneses. Há uma profunda cautela em mergulhar no formato original da história para entender a melhor forma de agradar o público internacional sem perder o charme de uma produção inerentemente japonesa.

Caracterização ficou próxima ao original até mesmo nos personagens mais diferentes (C. Netflix)

O visual, por exemplo, permaneceu praticamente inalterado, levando os designs coloridos e exagerados da mente de Eiichiro Oda para o mundo real com perfeição. Os cenários, em especial, estão grandiosos e muito vivos, garantindo uma grande imersão à trama que é reforçada pelos figurinos, quase sempre primorosos, com exceção de uma ou outra peruca estranha. Em certos momentos, a iluminação nada realista de algumas cenas e caracterizações que beiram o cosplay podem criar uma sensação de artificialidade, quase como no filme da Barbie. Pode quebrar a imersão daqueles que não abraçaram por inteiro a galhofa de One Piece, mas funciona bem para construir a atmosfera de uma fantasia surreal.

Quem sofreu mudanças drásticas foi o enredo original, modificado para funcionar melhor em um período mais curto de tempo. Não espere exatamente a mesma história do mangá de 1997. Nesse sentido, a série é como um cozinheiro que conhece de cor uma velha receita de família e adiciona o seu próprio tempero, sem seguir à risca as instruções clássicas. Tem o cuidado de manter os mesmos ingredientes que levaram One Piece ao sucesso internacional, porém mistura tudo do seu próprio jeito. O sabor final é maravilhosamente familiar e ao mesmo tempo original, digno de algo que seria servido no Baratie, mesmo com a presença de uns erros bárbaros que destoam da qualidade geral.

O principal ganho das mudanças feitas à trama foi um sentido maior de coesão e uma melhora considerável no ritmo da história. Apenas cortar cenas consideradas não-essenciais resultaria em um resumo sem vida e sem coração, digno de um rápido vídeo de recapitulação de internet — mas não foi isso que aconteceu. Os roteiristas analisaram com cuidado cada arco apresentado, anotando os eventos principais e os temas abordados, para traçar uma nova rota para a trama, resultando assim em uma história praticamente original, pensada diretamente para funcionar no formato de série live-action.

O Arco de Baratie está entre os melhores, apesar de sofrer grandes mudanças (C. Netflix)

O resultado final, neste sentido, foi bastante misto. Houve uma perda significativa no impacto de cada trama, sem tempo de desenvolver com profundidade temas que são explorados com calma no anime. Não perdem a essência das narrativas mais importantes, mas esvaziam muito do que é dito. Se o anime veleja por águas profundas, a série live-action nunca sai do conforto do raso.

Enquanto alguns arcos, como Romance Dawn, do primeiro episódio, e o Parque Arlong, dos episódios finais, carregam uma experiência bem parecida com a trama original, outros como o Arco de Orange Town, do segundo episódio, foram brutalmente desvirtuados. Há uma inconsistência gritante no tom, que destoa na sua abordagem sombria, e na qualidade do roteiro, excessivamente expositivo, que prejudicam momentaneamente a obra, mas não atrapalham a percepção geral.

Em contrapartida, muitas cenas e tramas secundárias que foram adicionadas ou adiantadas enriqueceram bastante a história geral. A forma como Zoro e Nami são apresentados, por exemplo, funciona de um jeito bem orgânico e empolgante, trazendo uma amostra do potencial da equipe de Luffy em ação logo no primeiro episódio. Mas a melhor adição foi a extensão do papel de Koby na trama. O desenvolvimento do covarde marinheiro funciona como um contraponto da evolução do pirata do chapéu de palha ao longo de toda a temporada, culminando em um confronto final inesperado e interessante.

Trio ganha trama inédita e rouba a cena na série (C. Netflix)

Não só acrescentou à estrutura da série, que ganhou nesta trama paralela um fio condutor que une de forma mais orgânica os diferentes arcos da história, como também abre espaço para algumas das melhores atuações da temporada. Morgan Davies simplesmente rouba a cena como Koby, dando vida a um personagem cheio de conflitos internos que acrescenta uma série de dilemas à história. Aidan Scott também chama atenção com seu marujo mimado Helmeppo, mas acaba engolido pela atmosfera intimidadora e que demanda respeito de Vincent Regan como Vice-Almirante Garp.

Outras adições, mais sutis, fortalecem a construção de mundo do universo. Os mares de One Piece: A Série parecem muito maiores do que é visto na primeira temporada graças à inclusão de nomes e menções de eventos que só irão acontecer bem adiante na trama. As pistas reforçam a ideia de um mundo bem planejado e criam lacunas que convidam a imaginação do público a teorizar o que está por vir. E considerando a qualidade de tudo que é entregue, parece que vamos ter novas temporadas para apreciar por um tempo.

No fim, impressiona como One Piece: A Série parece uma tradução natural do mangá clássico para o formato live-action.  A série transborda de tanta imaginação. Tem um raro frescor de uma inocência quase infantil, um olhar para o mundo que enxerga cada possibilidade, mas com um roteiro maduro que cativa com genialidade. Muitas de suas maiores forças são heranças diretas do anime clássico. Mas o grande mérito da série é realmente saber respeitar a obra original.

Nota: 4,5/5