Crítica: Monster apresenta um mistério que engana com elegância até o último minuto

Capa da Publicação

Crítica: Monster apresenta um mistério que engana com elegância até o último minuto

Por Gabriel Mattos

Houve um tempo em que a verdade era absoluta. No mundo moderno, o que vale é a narrativa predominante. Acompanhamos batalhas para dominar o discurso público em todos os cantos — entre políticos, jornais, influenciadores… Não importa mais o que realmente acontece e sim o que as pessoas acreditam. Explorando na prática essa filosofia em um drama familiar muito sensível, o diretor japonês Hirokazu Koreeda constrói o mistério de Monster (ou Kaibutsu, no original) que ganhou Melhor Roteiro no Festival de Cannes, o carinho do público no Festival do Rio e grandes chances de uma indicação para o Oscar 2023.

Ficha Técnica:

Título: Monster (Kaibutsu)

 

Direção: Hirokazu Kore-eda

 

Roteiro: Yûji Sakamoto

 

Data de lançamento: 30 de novembro de 2023 (Brasil)

 

País de origem: Japão

 

Duração: 2h 6min

 

Sinopse: Depois de descobrir que um professor é responsável pela súbita mudança de comportamento de seu filho, uma mãe invade a escola decidida a fazer o que for preciso para saber o que está acontecendo. Enquanto o caso se desenrola pelos olhos da mãe, do professor e da criança, a verdade começa a surgir.

A trágica armadilha de crescer escondido

De cara, Kaibutsu me lembra a mesma atmosfera de um de meus animes favoritos de toda a existência: Boku Dake Ga Inai Machi (“A Cidade em que só eu não existo”, em tradução livre), ou, para quem não é fluente em otaku, Erased. Ambos são mistérios, com forte presença do ponto de vista infantil, que tem como o palco principal um ambiente escolar em que algo de muito errado está acontecendo. No anime, um serial killer precisa ser impedido. Já no longa, nunca fica muito claro qual é essa ameaça. De início, sabemos apenas que o filho de uma mãe solteira está sofrendo na escola e que algo precisa ser feito.

Essa simples mudança por si só, de esconder exatamente contra o que se está lutando, torna a experiência do filme muito mais agoniante. Algo de muito estranho e perigoso está definitivamente acontecendo com o jovem Minato Mugino, vivido brilhantemente por Soya Kurokawa. Todos os sinais estão lá. O senso de ameaça é bem claro e especialmente marcado por seu comportamento intenso, enigmático e perturbador, transmitido pela atuação impressionante do menino. Mas não importa o quanto a história corra atrás da verdade, ela sempre consegue escapar de uma forma esquisita e intencionalmente confusa.

A graça do filme está em realmente não saber. Não importa o quão apurado seja o seu faro para mistério. Nem mesmo se você foi criado assistindo Scooby-Doo ou lendo Sherlock Holmes fica fácil desvendar as pistas espalhadas pelo roteiro antes da hora certa. A narrativa foi construída como um elaborado labirinto. Quando você acha que está seguindo o caminho certo, bate de cara em um beco sem saída. Os rastros levam sempre a deduzir a pior das hipóteses, sugerindo uma ameaça extraordinária quando a resposta é muito mais trivial, mesmo que igualmente dura. E nessa trivialidade que a trama conquista, entregando cenas repletas de dramas e momentos sinceros de emoção que sequestram a atenção com a sua sensibilidade.

A intensidade de uma mãe acuada comove ao longo do filme

Mesmo para os mais curiosos em descobrir o que há de errado na escola, fica impossível ignorar a dor de uma mãe impotente diante do sofrimento do filho. Especialmente com a versatilidade que Sakura Ando demonstra em cena, navegando com sutileza entre a agonia de uma mulher sobrecarregada e as explosão de fúria de uma leoa capaz de tudo para defender seu filhote. Ou o desespero de um professor perdendo a sanidade de uma forma absolutamente crível, graças à atuação certeira de Eita Nagayama, enquanto luta para manter seu emprego quando o mundo parece determinado a fazê-lo desistir de tudo.

Os dramas pessoais são tão envolventes que ativam um instinto de desligar um pouco o senso crítico e só torcer para que os protagonistas consigam chegar ao fim de suas missões, mesmo que isso signifique se afastar da verdade ou da raiz do problema. O roteiro é separado exatamente do ponto de vista desses três narradores pouco confiáveis para incentivar um maior apego, o que funciona muito bem. Quase como um suborno que incentiva a acreditar na dor dos personagens mesmo quando suas versões dos fatos se colidem com gritantes contradições. 

E essa estrutura ainda garante que o público tenha apenas uma visão parcial da história. Quase como tentar resolver um mistério que está sendo investigado pelas parcas, aquelas senhorinhas cegas que dividem um único olho na mitologia romana. Você nunca está vendo a cena completa. É um recorte bem limitado dos acontecimentos, que passa por um filtro pessoal que não dá a mesma importância a detalhes que acabam se mostrando cruciais pelo ângulo certo. Somente quando a história progride e revisita os mesmos eventos sob um novo olhar que as coisas começam a fazer sentido. Cabe ao espectador montar o quadro que revelará o que realmente aconteceu antes dos momentos finais — que trazem a resposta com uma bela pedrada emocional.

Complexo, misterioso e errático, Minato traz um ar de imprevisibilidade à trama

Enquanto expande cautelosamente seu grande enigma, sempre recontextualizando suas pistas conforme o ponto de vista muda, a trama consegue trabalhar paralelamente problemas relevantes. São questões típicas da sociedade japonesa, mas que ainda fazem sentido em todo mundo, como o perigo de defender aparências a todo custo, a pressão desleal que as mulheres sofrem para serem perfeitas, a fragilidade de um trabalhador diante de uma empresa em crise e a solidão daqueles que são diferentes, especialmente em meio a um povo que valoriza uniformidade. 

Sem nunca ofuscar a narrativa principal, a inclusão destes temas traz textura à história e ajuda a soprar vida aos personagens. Faz com que continuem parecendo reais, que ainda dê para se identificar, mesmo quando estão enfrentando situações extremas que, com sorte, nenhuma pessoa normal enfrentaria. Mesclar características típicas de um drama familiar e de um coming-of-age, uma história de amadurecimento, foi uma estratégia certeira para trazer um coração ao gênero de suspense investigativo, que costuma ser tão frio.

Nota: 5/5

Sempre equilibrando sua atmosfera, Monster é uma harmoniosa experiência para quem gosta de se sentir que, apesar de estar perdido, está sendo guiado para um bom caminho. É como tentar montar um quebra-cabeças sem nenhuma imagem de referência, juntando peças conforme são encontradas, na certeza de que tudo vai fazer sentido no final. A todo momento, o roteiro lança mão de táticas para confundir e sensibilizar o público, enquanto monta uma delicada trama sobre inocência, humanidade, solidão e respeito. E assim, forma uma das histórias mais sensíveis sobre crianças que, apesar de diferentes, só querem ser amadas e protegidas como qualquer outra.