Crítica: Godzilla Minus One troca ação pelo drama em reflexão sincera sobre o passado do Japão

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Crítica: Godzilla Minus One troca ação pelo drama em reflexão sincera sobre o passado do Japão

Por Gabriel Mattos

Atenção: Alerta de Spoilers!

Monstros nascem dos nossos medos. São quase como uma sombra do inconsciente, uma escuridão sempre a nos perseguir. Assim, quando a bomba mais destrutiva da história da humanidade desolou cidades do Japão, criou em seu povo um pavor descomunal de um futuro incerto. E com esse pânico colossal, nasceu Godzilla. No ano em que o ocidente celebra o criador da bomba atômica com Oppenheimer, o diretor Takashi Yamazaki propõe, com Godzilla Minus One, um olhar mais humanitário dessa guerra: encarar a fera de frente para entender o que há por trás do monstro.

Ficha técnica

Título: Godzilla Minus One

 

Direção, Roteiro e Efeitos Especiais: Takashi Yamazaki

 

Roteiro: David Leslie e Johnson-McGoldrick

 

Data de lançamento: 14 de dezembro de 2023

 

País de origem: Japão

 

Duração: 2h 5min

 

Sinopse: Com o fim da Segunda Guerra Mundial, um kamikaze renegado carrega o arrependimento de não ter morrido por seu país quando se depara com Godzilla, um monstro gigante que destrói todo um esquadrão em minutos. Anos depois, quando o monstro retorna, o ex-soldado transforma em sua missão pessoal impedir a onda de destruição da criatura — mesmo que isso custe a sua vida.

Aprendendo com monstros a entender o medo

Sem perder a simplicidade esperada de um longa sobre um monstro gigante, Minus One acerta ao ir além da metáfora óbvia normalmente associada ao kaiju. Dessa vez, Godzilla não é apenas a encarnação do temor japonês pela radiação, resultante do ataque por bombas atômicas. Ainda existe este peso, claro, só que como apenas mais uma das facetas desta criatura. Ele incorpora uma série de medos e incertezas muito mais abstratas e difíceis de explicar, que são exploradas com calma ao decorrer das quase duas horas de filme.

A trama acompanha de perto a vida repleta de culpa de Kooichi Shikishima por ter sobrevivido à Segunda Guerra Mundial. O ex-soldado era um desertor que desistiu de sua missão suicida como parte do esquadrão kamikaze do exército japonês, pilotos que juraram sacrificar a sua vida para usar seu avião como uma bomba. Mas a decisão de poupar a própria vida foi recebida com vergonha por muitos, incluindo ele mesmo, o que só se intensificou ao também sobreviver ao primeiro ataque do Godzilla. Quando o monstro ressurge muitos anos depois, ele decide abrir mão de tudo para pôr um fim nesta ameaça custe o que custar.

O conflito pessoal entre Kooichi e Godzilla é o fio condutor, tanto da ação quanto da emoção, de toda a história. Há uma relação de obsessão e caça que lembra bastante o clássico da literatura Moby Dick, de Herman Melville — especialmente quando o ex-soldado lidera um grupo nos mares para enfrentar o monstro. A direção ainda aproveita inspirações diretas de um outro marco artístico, desta vez do cinema, para construir de forma visual a tensão provocada pela fera — o Tubarão de Steven Spielberg.

A presença em cena do Godzilla é sempre impactante. O monstro não é escondido, preservando sua revelação para um momento posterior, como acontece em muitos filmes de suspense ocidentais. Mas ao mesmo tempo sua imagem não é exposta em excesso, o que desgastaria a sua imponência como nos filmes ocidentais do kaijuu. O monstro aparece apenas o quanto ele for necessário para intimidar, alimentar o medo do público e deixar uma sensação de que é impossível escapar de sua fúria.

Nos mares, suas barbatanas são o destaque, como um tubarão, dando a impressão de que pode atacar de qualquer lugar, a qualquer momento. Na cidade, sua imensidão fica clara ao mostrar apenas membros do seu corpo destruindo tudo em seu caminho. E quando a criatura pode ser contemplada em todo o seu esplendor, fica claro que a coisa ficou feia. Isto é, para os personagens, que vão ter que sofrer com os seus terríveis ataques. Porque para o público sua aparição é fenomenal.

Não apenas o próprio monstro tem um visual bastante ameaçador e caprichado, como seus ataques são igualmente satisfatórios. Ver cada escama em sua coluna se destacar com um estalo e liberar um brilho radioativo antes de uma rajada de energia devastadora é de arrepiar. Minus One aposta em uma ação rápida, bombástica e efêmera, como uma explosão. O Godzilla impõe um certo medo que conversa diretamente com a temática do filme. E o diretor, que também cuidou dos efeitos visuais, não tenta esconder a criatura com uma fotografia noturna, como o cinema estadunidense tentaria fazer: ele quer que o Godzilla seja visto à luz do dia. Afinal, essa é a temática do filme — encarar o lado mais feio do medo para entender o que o torna tão destrutivo.

Um filho perdido do Studio Ghibli

E o roteiro sabe equilibrar toda a adrenalina que vem dos ataques do kaijuu com momentos longos de calmaria. Esta é a beleza do cinema japonês, inclusive. Yamazaki, o diretor do projeto, não esconde que buscou influência em filmes do Studios Ghibli para contar suas histórias. São animações muito mais contemplativas que costumamos encontrar no ocidente, com um ritmo de roteiro mais lento, que encaixa muito bem na proposta de Minus One. Após a violência de um ataque do Godzilla, o público é convidado a refletir sobre essa agressão sob a perspectiva dos sobreviventes — em especial do protagonista, Kooichi.

O homem tem seu passado, presente e futuro destroçados pela passagem do monstro, todos representados pela sua relação disfuncional com personagens chave. O outro sobrevivente do primeiro ataque do Godzilla marca o seu apego à guerra que nunca terminou. A mulher com quem compartilha a vida sem se envolver representa o presente que recusa a viver. E a criança, que não se acha digno de assumir, mostra um futuro puro em que não se acha digno de imaginar. 

Talvez o maior desperdício do filme seja exatamente tratar esses personagens apenas como figuras, sem desenvolver uma trama própria com desejos e motivações. Abriu mão da oportunidade de abordar mais perspectivas em nome de mergulhar a fundo em um drama bem particular. Com isso, ao menos, soube aproveitar ao máximo o tempo do longa para cozinhar suas discussões de uma forma bastante leve, calma e pouco expositiva. 

Pode ser uma experiência diferente para quem está acostumado com o ritmo frenético dos blockbusters ocidentais, o que pode explicar uma resistência de parte do público, mas mergulhar no drama pessoal dos sobreviventes de uma guerra é o que mais enriquece a história. Dar um tempo de respiro para o público processar a magnitude do trauma de ver uma cidade ser devastada em minutos faz toda a diferença para trazer um peso à narrativa. Não dá para se distrair com a próxima grande sequência de ação. A ideia é realmente refletir sobre o lado mais feio da guerra.

A fome, os órfãos que ficam para trás, as cidades repletas de inocentes que precisam se reconstruir, os soldados marcados para sempre por traumas de um conflito que eles não começaram… Em um mundo cada vez mais cercado de lutas, como a guerra entre Ucrânia e Rússia e os ataques de Israel à Palestina, lembrar do lado mais cruel do conflito é sempre um exercício importante de humanidade. Mais relevante que trazer aos holofotes o criador das armas que alimentam essas guerras é mostrar a ferida deixada nas maiores vítimas: os cidadãos inocentes daquele país.

Em Minus One, o Japão faz um raro exercício de autocrítica do papel de seu governo no sofrimento de seu próprio povo. O filme faz questão de reforçar que, desde que sobreviveu ao primeiro ataque do Godzilla, Kooichi não havia conseguido voltar, mentalmente, da guerra. Seu corpo havia sobrevivido, mas sua mente estava apegada àquele acontecimento no passado: na culpa de ter desafiado as ordens do governo. Godzilla, aqui, serve também como uma representação do medo que o povo japonês tem de se rebelar, em especial devido ao tradicionalismo de sua cultura.

Em Minus One, o governo não tem rosto, mas sua ausência é muito sentida (Créditos: Sato Company)

O filme é cercado de momentos que reforçam essa ideia, como a abstenção do governo no enfrentamento ao Godzilla para evitar um incidente político entre Estados Unidos e a União Soviética. E até mesmo a forma como a criatura é derrotada, com a união do povo sem a ajuda do governo, renegando a sua política de sacrifícios para pensar um novo futuro para a sociedade japonesa. Um futuro que valorize a vida de seu povo, não a soberania de seus governantes.

Godzilla é menos uma representação do medo nuclear — afinal, os Estados Unidos são pouco citados na trama — e mais como um fantasma do passado. Um espírito maligno que veio para forçar os japoneses a confrontarem a forma horrível que seu próprio país tratou seus cidadãos durante a guerra. É menos sobre olhar para fora, neste conflito, e mais sobre olhar para dentro.

Yamazaki, o diretor, comenta em uma entrevista ao Inverse que em Minus One, assim como em Princesa Mononoke do Studio Ghibli, “as pessoas têm que apaziguar um espírito furioso”. Ele atrela a origem desse ponto em comum, em muitas histórias japonesas, ao modo de olhar o mundo de religiões como o xintoísmo e ao animismo. É equivalente a forma que, no ocidente, falamos sobre “exorcizar nossos próprios demônios”. Godzilla Minus One é sobre isso.

Neste filme, o medo causado pelo Godzilla é um catalisador de mudança. Confrontadas com o terror do kaijuu, as personagens do filme não veem outra escolha a não ser mudar, questionar suas crenças, para sobreviver. E uma das crenças mais atacadas ao longo do roteiro é a ideia de que a vida é descartável, como acontecia com os kamikaze. Kooichi passa tanto tempo preso na sua guerra mental que a sua recompensa pela vitória é voltar a viver — uma mensagem muito importante em uma época em que guerras estouram por todo mundo.

Nota: 5/5

Godzilla Minus One é tudo que os blockbusters estadunidenses não são: certeiro, emotivo, grandioso e ao mesmo tempo intimista. Harmonia é a palavra-chave. Nada existe em excesso neste longa, permitindo que cada elemento conviva sem devorar o outro: a ação e o drama, a adrenalina e a reflexão, o espetáculo e a crítica… Em nenhum momento o filme se perde do que quer ser: uma história de como entender o medo, sem julgamentos, pode irradiar mudança.