Review: Ghostwire Tokyo é um passeio casual pelo Japão em meio a um tiroteio sobrenatural

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Review: Ghostwire Tokyo é um passeio casual pelo Japão em meio a um tiroteio sobrenatural

Por Gabriel Mattos

Ghostwire: Tokyo se tornou o meu título favorito da Bethesda. Desenvolvido pela Tango Gameworks, o game chegou para PlayStation 5 e PC nesta sexta (25), depois de muitos anos de expectativa do público. E mesmo que, em quase quinze horas de campanha, não seja apresentado nada que já não tenha sido feito em algum outro jogo, a experiência final consegue ser tão especial que acaba deixando sua marca. O que falta de inovação, sobra de personalidade.

Ficha técnica

Título: Ghostwire: Tokyo

Desenvolvedora: Tango Gameworks

Distribuidora: Bethesda

Plataformas: PC e PS5

Lançamento: 25 de março de 2021

Gênero: Jogo de Tiro em Primeira Pessoa, Ação e Mundo Aberto

Tradução para o Português: Sim

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Exorcizar espíritos com linhas mágicas lembra Doutor Estranho.

A maior parte do tempo, por exemplo, o jogador estará enfrentando espíritos malignos em um grande confronto paranormal. Maldições são combatidas com feitiços coloridos e poderosos que facilmente vendem a fantasia de que o jogador é um exorcista de respeito, mesmo que a história diga o contrário.

Misturando um visual rúnico, bem similar com a estética do Doutor Estranho, com atributos elementais, no melhor estilo A Lenda de Aang, Ghostwire: Tokyo constrói o conceito de Tecelagem Etéria. Cada feitiço tem um impacto e uma aplicação bem intuitiva — a versatilidade da Tecelagem de Água ajuda a controlar vários inimigos por vez, enquanto a Tecelagem de Fogo é a mais destrutiva, como o próprio elemento.

Funciona tão bem, de um jeito que parece natural, que te convence que é algo revolucionário, quando não é. No fundo, é apenas um jeito bonitinho de apresentar um dos sistemas de combate mais corriqueiros da indústria de jogos: o tiro em primeira pessoa.

Combate mágico fica intenso.

A dificuldade não é nada desafiadora e os inimigos são menos variados do que parece, mas o mero carisma de toda a apresentação impede que o jogo fique enjoativo. É simples, elegante e funciona. Dá para ver o cuidado ao esculpir cada detalhe, garantindo que tudo encaixe do melhor jeito possível.

Talvez por isso seja tão estranho constatar que, em outras áreas, o jogo beira ao relaxamento. Mas há uma explicação bem justa para esta dicotomia quando analisamos os bastidores do desenvolvimento de Ghostwire: Tokyo.

Entendendo os bastidores…

Quando foi apresentado ao mundo pela primeira vez, lá na saudosa E3 2019, era claro que o estúdio sabia exatamente onde queria chegar. A questão é que, além dos desafios inesperados da pandemia, havia uma clara batalha criativa por debaixo dos panos em que a qualidade do jogo acabou não levou a melhor.

Quem subiu ao palco para falar sobre o projeto na conferência da Bethesda foi a diretora criativa, Ikumi Nakamura, que mal conseguia conter sua animação ao compartilhar com o mundo sua visão para o jogo. Em suas palavras, este era um novo tipo de ação e aventura: macabro, mas longe do survival horror que tornou o estúdio conhecido.

O conceito parecia “interessantezinho”, mas o que realmente chamou a atenção do público foi a personalidade de Ikumi. Ela esbanjava vida, espontaneidade e carisma, que acabaram virando as maiores qualidades de seu jogo. Era evidente que a alma dela estava naquele projeto.

Infelizmente, por “desavenças criativas”, ela deixou o cargo pouco tempo depois e esta perda é perceptível no produto final. Ghostwire: Tokyo é um jogo absurdamente autoral, mas sem sua idealizadora, ele precisou ser concluído por gente que não estava afinada com a visão original.

Espírito errante

O vilão parece imponente, mas nunca faz nada muito assustador.

Essa falta de sintonia é absurdamente escancarada na história da campanha principal do jogo. A premissa é, no mínimo, intrigante, só é mal executada. Na trama, todas as pessoas desapareceram de Tóquio. Tudo porque suas almas foram separadas de seus corpos em uma grande catástrofe sobrenatural causada pelo vilão mascarado Hannya.

Suas motivações são um mistério a princípio, mas ele quer sacrificar almas errantes em um ritual que vai romper a barreira entre o mundo espiritual e material. E só Akito, um humano possuído pelo espírito do investigador KK, pode impedir esse esquema.

Poderia ser o ponto de partida perfeito para uma história empolgante, cheia de viradas surpreendentes a cada pista inesperada que o jogador descobrisse sobre o sobre o submundo e a identidade do homem mascarado. Entretanto, desperdiçando todo o seu potencial, o roteiro decide seguir pelos caminhos mais óbvios e desinteressantes.

Amizade entre Akito e KK é tudo o que se salva da campanha principal.

É quase como se o meio da narrativa fosse criado sem nenhuma consideração sobre aonde a história quer chegar — uma comovente reflexão sobre luto. Entretanto, sempre surgem contratempos obviamente artificiais que não acrescentam em nada a história. Quando as coisas parecem avançar, a missão principal se torna uma busca por gasolina, cartão de orelhão ou qualquer outra tarefa cotidiana que force o jogador a se movimentar de ponto A ao ponto B.

Fica claro que esses obstáculos só existem para prolongar a vida útil da campanha, apresentando mais oportunidades para o jogador interagir com o mundo aberto. Uma pena, porque caso houvesse o mesmo nível de cuidado que o estúdio dedicou a outras áreas, poderíamos ter uma das histórias mais comoventes da indústria sobre morte, perda e dor em seu estado mais profundo.

A impressão que fica é que Ikumi imaginou o desfecho de um lugar muito pessoal e emocional, mas as pessoas encarregadas de destrinchar a história simplesmente não tinham o mesmo nível de conexão com o assunto. O sentimento dos personagens não parece genuíno em momento algum, precisamente por não ser algo construído, mas sim exposto. Era um aspecto que precisava de uma entrega pessoal dos roteiristas, que acabou recebendo um olhar frio e apagado.

Para o Japão, com amor

Ghostwire: Tokyo apresenta a cidade como se fosse de casa.

Não surpreende que seja entre as pausas da campanha principal — no mundo aberto e em suas missões secundárias — que o jogo encontre seu brilho. Diferente do que a névoa na eterna noite do game possa sugerir, Ghostwire: Tokyo tem como grande meta construir um ambiente acolhedor e intimista, onde os desenvolvedores consigam mostrar suas experiências pessoais, lembranças e relatos sobre as tradições folclóricas nipônicas para o jogador. Ao invés de uma abordagem distante e objetiva, como fazem os históricos Assassin’s Creed, a intenção é tornar as coisas o mais parciais possíveis.

Assim, caminhar pela Shibuya virtual do jogo é como uma visita agradável à cidade de um amigo, que vai te mostrando cantos que turista nenhum imaginaria explorar, contando curiosidades que só um local poderia saber. Deste jeito, mesmo que a cidade não seja habitada por nenhuma pessoa, ela ainda parece viva, um grande mérito da equipe de produção.

Uma abordagem parecida é usada nas missões secundárias. Lendas sobre os yokais são declamadas por espíritos errantes com muita naturalidade, como se a tradição japonesa estivesse sido mantida pela oralidade, como vem ocorrendo há séculos. Além de trazer recompensas bem generosas, a garantia de encontrar narrativas ricas são um forte incentivo para explorar ao máximo tudo o que o jogo tem a oferecer.

As missões secundárias sempre tem algo de bom a oferecer.

E é nesses detalhes que o coração do jogo se revela: tudo em Ghostwire: Tokyo respira paixão pela cultura japonesa. Esse é um jogo para quem ama o Japão e tudo o que ele representa.

Esse lado apaixonado continua sendo mostrado na construção do lado místico e sobrenatural da jornada. Para tornar as lendas urbanas em suas versões originais (pouco conhecidas) mais palatáveis para o grande público, o estúdio não hesita em incorporar traços de senso comum, disseminado por mangás e animes. É uma releitura com a melhor das intenções, que desperta um sentimento de “eu já vi essa história”, que acaba sendo ao mesmo tempo incômodo e reconfortante.

Talvez por isso a pegada do jogo lembre bastante o anime Jujutsu Kaisen. Não é o caso da animação ter influenciado os desenvolvedores. Na verdade, tanto o jogo quanto o anime parecem ter se baseado nas mesmas referências. Os melhores chefes, por exemplo, levam o jogador para sua própria dimensão, como as Expansões de Domínio da obra de Gege Akutami. A caça aos espíritos, que só humanos com alto nível de esper podem ver, lembra bastante as maldições do anime.

Os chefes mais poderosos rendem momentos interessantes com suas “Expansões de Domínio”.

Até mesmo a dinâmica entre um humano comum e um espírito com poderes mágicos remete bastante a de Yuji e Sukuna. KK tenta por vezes se apossar do corpo de Akito, mas o garoto resiste a sua influência e aprende aos poucos como canalizar o poder do sobrenatural. A troca entre os dois floresce de forma tão orgânica que consegue carregar as partes mais tediosas da trama. Simplesmente funciona e o jogo sabe explorar isso ao seu favor com maestria.

Isso porque a relação entre a dupla está intrinsecamente ligada ao sistema de combate, focado em ação. Mas existem momentos em que esta conexão é quebrada por monstros poderosos, transformando os espíritos que Akito costumava caçar em seus perigosos caçadores. A dinâmica do jogo, nestes momentos, muda completamente. A ação desenfreada dá espaço à tensão e ao desespero de querer recuperar seu amigo (e seus poderes). São os momentos que mais se beneficiam da atmosfera macabra, valorizando as mecânicas de furtividade, mas rapidamente passam, deixando um gostinho de quero mais.

Nota: 8/10

No fim, são esses encontros cuidadosamente pensados que ficam na memória quando se joga Ghostwire: Tokyo. Mesmo que a campanha não impressione, a ambientação absurdamente imersiva conquista qualquer um que tem algum apreço pelo Japão e sua cultura. O combate é outro grande destaque que vicia em sua simplicidade, mas que pode perder o brilho para aqueles que esperam alguma dificuldade.

 

Modelos gráficos simples tornam difícil justificar a semi-exclusividade do PlayStation 5, mas o que realmente frustra neste jogo é a sua inconsistência. Caso seguisse a risca o planejamento de Ikumi Nakamura, certamente entraria para a história como uma das experiências virtuais mais imersivas já criadas. Mas o que temos é apenas um fantasma do que poderia ter sido. Um game intimista, confortável, mas com um certo receio de ser muito pessoal.

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