[Opinião] O problema da Marvel com as mulheres

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[Opinião] O problema da Marvel com as mulheres

Por Melissa de Viveiros

Em 2019, durante a San Diego Comic Con, Natalie Portman se juntou a Taika Waititi e Chris Hemsworth no Hall H para anunciar não só seu retorno para a franquia de filmes do Thor, mas também sua introdução como a Poderosa Thor. Jane Foster finalmente teria seu momento de brilhar, deixando de ser uma mera coadjuvante e interesse romântico sem profundidade para mostrar todo o seu potencial em uma trama que daria a ela o devido destaque. 

Imagens da atriz erguendo o Mjolnir simbolizavam isso, deixando os fãs das HQs de Jason Aaron ansiosos por essa adaptação. Os fãs dos quadrinhos e os fãs dos filmes também, que há tempos desejavam ver grandes heroínas ganharem espaço nas produções do MCU.

O anúncio, tal como a chegada de Brie Larson como Capitã Marvel, prometia trazer essa mudança, após mais de 20 filmes focados predominantemente em protagonistas homens (e brancos). A injustiçada Viúva Negra de Scarlett Johansson teria seu filme solo (finalmente). Wanda (Elizabeth Olsen) estrelaria sua própria série, que prometia dar a ela o espaço que nunca teve nos cinemas. Universos alternativos trariam de volta Hayley Atwell, não como interesse romântico, mas como a Capitã Carter, mesmo que apenas em formato animado. 

As promessas foram muitas e, inevitavelmente, criaram expectativas. Não de que essas obras teriam uma qualidade diferente do padrão da Marvel, não que seriam de algum modo elevadas, mas de que essas personagens e várias outras teriam seu próprio espaço, sem depender dos sentimentos de um personagem homem para sua relevância na trama.

E, não me entendam mal, ter esse papel por si só não seria um problema se houvessem outros. Personagens coadjuvantes são necessários, interesses românticos são bem-vindos, e ninguém espera que eles tenham mais destaque e profundidade que os protagonistas. O problema é quando isso é tudo que as mulheres desse universo podem ser – bom, isso ou antagonistas igualmente sem profundidade.

Capitã Marvel, a primeira produção da Marvel protagonizada por uma mulher, recebeu uma reação negativa desproporcional. De críticas à atriz a um olhar muito mais crítico em relação à obra do que o que se justifica para um longa do MCU, o filme foi tratado como um dos piores títulos da mesma franquia que já havia lançado Thor: Mundo Sombrio e Vingadores: Era de Ultron

Apesar disso, Capitã Marvel ainda configura a melhor tentativa do estúdio de desenvolver uma personagem mulher no papel de protagonista. Independente de sua qualidade, o longa dá a Carol Danvers o que deu a tantos outros, desde o Homem de Ferro ao Homem-Formiga: uma história focada nela, sem a necessidade de torná-la uma mártir para ser uma heroína. 

Viúva Negra chegou tarde demais para isso, após o fim de Natasha Romanoff em Vingadores: Ultimato. What If…? apresentou a Capitã Carter em um de seus episódios mais preguiçosos, desperdiçando a premissa de poder criar uma situação completamente diferente em favor de simplesmente colocá-la no lugar do Capitão América na trama de seu primeiro filme.

Wanda, após anos sendo uma personagem praticamente de fundo, teve desenvolvimento promissor em Wandavision. A série deu a ela o muito necessário espaço para que lidasse com seus inúmeros traumas, e por mais que fraqueje em sua parte final, conseguiu se mostrar uma das melhores produções do MCU no formato até agora. 

Wandavision investiga o passado de sua protagonista, mas, mais que isso, a série parecia trabalhá-la para o futuro. Ao fim dos seis episódios, ela toma para si todo o poder da Feiticeira Escarlate, sem temê-lo ou temer a si, e sem cair no clichê do descontrole. 

Foi a primeira vez que ela utilizou o nome no universo live-action, além de ganhar um novo visual repaginando seu traje das HQs. Tudo parecia encaminhado para que, ainda que não tivesse superado todas as suas perdas, Wanda continuasse em um caminho de crescimento e ganhasse cada vez mais destaque.

Bom, o destaque veio em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. E, indo contra tudo isso, ela utiliza seu enorme poder para se tornar uma vilã – que dentro do filme funciona extremamente bem, se destacando no papel, mas que deixa um gosto amargo quando se considera toda a jornada de Wanda para além da produção de Sam Raimi.

Corrompida pelo Darkhold, a personagem deixa de lado qualquer lição sobre perda e luto que tenha aprendido anteriormente e, mais uma vez (olá Era de Ultron), volta ao posto de antagonista. E, mais uma vez (oi também Wandavision), faz com que pessoas inocentes sofram por ela própria não saber lidar com seu luto e ter poder demais em mãos. 

No fim, Wanda percebe seus erros (de novo) e realiza um último grande ato, sacrificando algo (de novo) para fazer a coisa certa. O filme tem seus acertos, como a compaixão e compreensão que a versão da personagem do universo 838 demonstra a ela mesmo após sofrer pelas ações de sua contraparte. 

É parte do que redime sua resolução: ainda que se sacrifique, há entendimento e simpatia. Há gentileza e, finalmente, alguém que consiga reconhecer a dor de Wanda e não deixá-la de lado. E essa é uma lição muito melhor sobre amor do que o próximo filme trouxe.

Pessoalmente, nenhuma dessas tentativas meia-boca me decepcionaram tanto quanto Thor: Amor e Trovão. Talvez o problema tenham sido as expectativas, mas acredito que foram as promessas. 

Mesmo em meio às várias outras mocinhas do começo do MCU, Jane Foster se destacava por seu desperdício de potencial. Apesar de ser apresentada como uma cientista muito inteligente, sua caracterização gira em torno de Thor e seu amor por ele. A promessa ia contra isso: Waititi havia afirmado em 2019 que a trama se basearia na Poderosa Thor de Jason Aaron, série de HQs que mostra Jane não só como uma personagem mais complexa em meio a um dilema difícil, como demonstra exatamente o que a torna digna de erguer o Mjolnir.

O mais novo longa da Marvel era a chance de trazer um pouco disso às telas. O debate aqui não é fidelidade – não é esse o ponto. O ponto não é nem mesmo que Jane Foster deveria ser a protagonista dessa história (ainda que eu acredite que o filme teria se saído melhor se esse fosse o caso). O centro da discussão é que ela deveria deixar de ser uma personagem rasa, tendo uma história, dilema e força que não tem nada a ver com seu amor por Thor.

Mas isso não é o que acontece. O longa de Waititi traz o retorno da personagem após anos para fazer com ela exatamente o que seus antecessores fizeram: torná-la um acessório do personagem principal. Dessa vez ela tem um novo visual, alguns poderes, cenas feitas para destacar como ela é poderosa. E isso é tudo. 

Jane continua ali simplesmente para que Thor a ame e sofra por sua perda. Pior que isso, tudo na história dela se resume a ele. Ela não tem o Mjolnir por ser digna, e sim porque o Deus do Trovão pediu ao martelo que cuidasse dela. Sua luta contra o câncer, que deveria ser uma história toda sua, a leva a uma escolha que é sobre Thor não importa o que aconteça: deixar o martelo de lado e sobreviver para que fiquem juntos ou empunhá-lo para salvar seu amado.

Lendo as HQs de Jason Aaron, o mais impactante para mim foi como Jane é digna e isso não só é mostrado em suas ações, como também é parte do motivo pelo qual ela está literalmente se matando para ser uma heroína na parte inicial da trama. É claro que a sensação de ser poderosa é parte do porquê ela quer continuar sendo a Thor. Mas é mais que isso: ela é incapaz de ignorar o sofrimento dos outros, mesmo quando isso vem às custas de seu próprio.

O filme, que facilmente poderia ter demonstrado isso, não o faz, afinal tudo é sobre Odinson, do início ao fim deprimente que ela tem. Não importa que nos quadrinhos também Jane não sobreviva ao câncer. Importa o modo como tudo é apresentado no longa, como tudo é sobre o Thor de Chris Hemsworth, como o amor só importa para que mulheres se sacrifiquem por homens neste universo.

Gamora que o diga, né?

Ou elas são sacrifícios voluntários, como Jane Foster e Natasha Romanoff, ou seu fim serve para o sofrimento dos homens ao seu redor, como Gamora (Zoe Saldana),  ou apesar de seu potencial elas não crescem e ganham espaço, como Nakia (Lupita Nyongo), ou são antagonistas amarguradas como Hela (Cate Blanchett) e, por um tempo, Nebula (Karen Gillan). E essas ainda assim são superiores às mocinhas indefesas que giram em torno do romance, como Christine Palmer (Rachel McAdams) e Pepper Potts (Gwyneth Paltrow), independentemente de sua competência.

Mesmo que exista um ou outro ponto que saia um pouquinho dessa curva (Thena e Sersi, de Eternos, Kamala Khan ou a própria Capitã Marvel, pelo menos tem características e ações que não são simplesmente causa ou motivação para um homem ter desenvolvimento), ainda não há comparação com os vários heróis e vilões que a franquia apresentou até hoje. E é extremamente cansativo ver isso continuar a se repetir, principalmente após tantas promessas de algo diferente.

Porque é esse o problema da Marvel com as mulheres: elas não estão ali para serem grandes personagens por si só, mas a própria franquia se recusa a admitir isso. Só que não adianta jurar que elas terão mais espaço e ter um único filme solo de uma heroína, ou sequer ter uma vilã que se equipare ao desenvolvimento que alguns dos antagonistas mais recentes ganharam. Não adianta reunir todas elas em um “momento girl power” ou fazer a Poderosa Thor parecer de fato poderosa em uma cena bonita que serve apenas como um tapinha nas costas dado pela própria Marvel para dizer “olha como somos progressistas”.

Não adianta dar a uma personagem seu momento heroico e deixá-la brilhar para matá-la logo em seguida.

Os heróis do MCU são diversos em história, desenvolvimento e personalidade. Eles podem ser arrogantes, podem ser gentis, podem ser exemplos da virtude, podem ser inexperientes, ou extremamente poderosos ou ter passados terríveis, ou terem atitudes terríveis. Eles podem sofrer sem perder a cabeça, porque é claro que são as mulheres poderosas que enlouquecem com o luto. Eles podem se achar superiores e agir como tal, mas ai de uma heroína que não tenta ser simpática. Eles podem cometer erros sem que isso custe a eles o sacrifício final.

E é claro que, logicamente, eu sei que aqui não é o lugar para procurar por histórias mais diversas, e sem dúvida não é de filmes da Marvel que se espera uma história profunda. Mas não deixa de ser cansativo esperar tanto por causa de promessas do próprio estúdio, para continuar nesse mesmo ciclo sem fim de mulheres tratadas como descartáveis e sem a mesma pluralidade de suas contrapartes masculinas.

Porque não é só sobre o que acontece na trama. É também sobre parte do público que simplesmente parece nunca ganhar espaço. É sobre parte do público estar cansada de ver que, mesmo no entretenimento mais básico, a ficção só vai até certo ponto. É possível imaginar um soro que garante superpoderes, joias com poderes cósmicos, raças alienígenas, ou até um bilionário mais preocupado em salvar o mundo que em ganhar dinheiro. Mas heroínas com características diversas e espaço real na franquia já seria demais, claro.

É preciso mais. Não queremos uma história de amor meia-boca onde recebemos o Mjolnir para sermos protegidas. Queremos ser dignas.

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