Crítica: Pinóquio de Guillermo del Toro é uma fábula com assustadores contornos reais

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Crítica: Pinóquio de Guillermo del Toro é uma fábula com assustadores contornos reais

Por Gus Fiaux

Em seu primeiro longa-metragem animado, Guillermo del Toro presenteia o mundo com uma fábula divertida e cheia de nuances. Pinóquio, nova adaptação da obra homônima de Carlo Collodi, traz toda a narrativa do boneco de madeira que sonha em se tornar um menino de verdade, mas dessa vez imerso em um cenário muito assustador: a Itália durante a ascensão do fascismo.

Com um elenco de vozes sensacional e um trabalho magnífico em stop-motion, o filme se sobressai como a melhor adaptação da história lançada em 2022, superando até mesmo o remake live-action da Disney (não que fosse muito difícil). Nós já conferimos ao filme e aqui você pode ler a nossa crítica!

Ficha técnica

Título: Pinóquio (Guillermo del Toro’s Pinocchio)

 

Direção: Guillermo del Toro e Mark Gustafson

 

Roteiro: Guillermo del Toro e Patrick McHale

 

Data de lançamento: 9 de dezembro (Netflix)

 

Países de origem: Estados Unidos e México

 

Duração: 1 hora e 57 minutos

 

Sinopse: Uma versão mais sombria do clássico conto de fadas infantil, onde um boneco de madeira almeja se transformar em um menino de verdade.

Pinóquio está disponível na Netflix.

Eu quero ser um menino de verdade!

Sempre podemos esperar o melhor vindo de Guillermo del Toro, isso é um fato. Ao longo de trinta anos, o diretor mexicano conseguiu construir uma sólida carreira dissecando e analisando a nossa relação com monstros e diversos seres fantásticos, iluminando um caminho de humanidade mesmo em meio às trevas mais obscuras. Em 2022, Del Toro volta para um de seus projetos mais ambiciosos, seu primeiro longa-metragem animado, Pinóquio.

Baseado na obra original de Carlo Collodi, que acabou recebendo inúmeras adaptações ao longo dos anos – dentre as quais, a mais famosa é o filme homônimo da Disney lançado em 1940 -, o longa parte da premissa que todos nós já conhecemos. Um carpinteiro chamado Gepeto decide criar um boneco de madeira, que acaba ganhando vida e parte em uma jornada de autodescoberta enquanto tenta se tornar um menino de verdade.

Porém, diferente da contraparte animada da Casa do Mickey Mouse, o novo filme lançado pela Netflix toma algumas liberdades criativas e rumos intrigantes, enquanto enlaça a história de Pinóquio com a ascensão do partido fascista na Itália e os desdobramentos que isso causou na sociedade da época, tudo sem perder o clima etéreo e esotérico que já estamos muito acostumados a ver no cinema de Del Toro.

Nos últimos anos, Del Toro esteve muito compenetrado na ideia de homenagear a era mais clássica de Hollywood. A Colina Escarlate retomou o gótico e as histórias de fantasmas em grandes mansões, A Forma da Água é uma nítida homenagem aos clássicos Monstros da Universal e, no ano passado, Beco do Pesadelo se debruçou sobre o cinema noir com uma visão supreendentemente humanizada.

Com Pinóquio, o diretor mantém essa tendência ao honrar as adaptações de fábulas e histórias fantásticas, talvez até melhor do que a Disney tem feito nos últimos anos. É um trabalho apaixonado e apaixonante, que mostra não só como Del Toro é um dos melhores contadores de histórias vivos na atualidade, como também sabe tratar de questões densas com a leveza necessária, mas sem perder o impacto.

Nesse sentido, o filme funciona quase como o encerramento de uma trilogia iniciada em 2001, com A Espinha do Diabo, e seguida por O Labirinto do Fauno, de 2006. São histórias onde vemos crianças (ou um boneco, nesse caso) passando por momentos aterrorizantes da história da humanidade, encontrando refúgio no fantástico. Não é a toa que a presença de Benito Mussolini, ainda que contida, ofereça uma sombra tão angustiante para a trama.

E parte da beleza da história não está apenas na narrativa em si, mas também na forma como ela é contada. Del Toro já havia trabalhado com animação, sobretudo stop-motion, em alguns curtas anteriores, mas esse é o primeiro longa do diretor que adota essa técnica. Por isso, faz todo sentido que o mexicano divida a direção com Mark Gustafson, cineasta famoso por curtas animados como Bride of Resistor Claymation Easter.

A qualidade da animação é impressionante do primeiro ao último segundo. Há uma textura, uma movimentação e até mesmo um senso de profundidade que não se encontra em animações geradas por computador, e assistir aos vídeos de bastidores que mostram o processo criativo por trás do longa é algo igualmente inspirador e satisfatório. Não só os bonecos saltam aos olhos, como também os cenários, as criaturas e até elementos naturais, como a água.

Fora que Del Toro mantém sua missão de criar monstros e seres fantásticos que são marcantes desde o vislumbre inicial. Um belo exemplo disso fica com o Espírito da Madeira e a Morte, duas irmãs que são parte indissociável da jornada da Pinóquio. Ambas interpretadas por Tilda Swinton, elas carregam um papel que pertence à Fada Azul no conto original, mas com um visual e uma presença tão enigmáticas que só podiam ter saído da mente do criador do Fauno de O Labirinto do Fauno e dos Kaijus de Círculo de Fogo.

Sobre marionetes e homens

Toda a relação que o filme constrói com a ascensão do fascismo traz camadas e mais camadas de interpretação, ainda mais se levamos em conta seu próprio personagem principal. Pinóquio é um menino de madeira, que foi criado de tal forma que fosse controlado por cordões, mas sua jornada gira em torno da desobediência como forma de livre-arbítrio e autoafirmação.

Essa posição contrasta em absoluto, por exemplo, com o personagem do Podestà, um oficial italiano de alto escalão do regime fascista, que cumpre as ordens de Mussolini como se fossem decretos religiosos. É nessa dualidade que o filme brinca com a questão de quem é a marionete, de fato? E não apenas isso, mas há um trabalho muito sutil e consciente de crítica em torno das instituições que abaixaram a cabeça para o fascismo, como a própria Igreja.

Porém, diferente de seus longas anteriores, Del Toro não é de todo pessimista. Sim, Pinóquio tem um final feliz e traz um conforto em meio ao caos, mas isso não muda toda a jornada que leva até ali, com mudanças cruciais no clássico conto para ressaltar esse teor histórico. Aqui, não há uma Ilha dos Prazeres onde meninos são transformados em burros de carga, mas sim um campo de treinamento para soldados fascistas, onde sonhos são despedaçados e vidas são perdidas.

Porém, ao retomar uma conclusão bonita – ainda que agridoce -, o filme nos lembra que há esperança mesmo em meio a tempos tenebrosos. É uma mensagem que pode até passar despercebida, especialmente porque o filme não verbaliza isso de forma expositiva, mas essa é a beleza da obra de Del Toro: encontrar significado nas entrelinhas e nos contornos, e não esperar por respostas mastigadas e óbvias.

Em sua essência, Pinóquio é um filme infantil e não tenta disfarçar isso. Sim, existem elementos de horror e muitos questionamentos atrelados ao contexto histórico, mas tudo é passado de uma forma que agrada crianças e adultos, em proporções e níveis diferentes. Claro, às vezes a trama corre um tanto depressa demais para não se alongar em temas mais pesados, como toda a sequência no campo de treinamento do exército fascista.

Ainda assim, a sensação que passa é que Del Toro conseguiu pegar a obra original de Carlo Collodi e reformulá-la para que ela tenha uma âncora ainda mais forte na nossa realidade, sem tirar os elementos fantásticos, mas dando a eles um novo significado. Não é uma mera “atualização para tempos e sensibilidades contemporâneas”, mas sim um mergulho em novas interpretações a partir de uma história já estabelecida. E essa é a graça das adaptações.

Por essas e outras, Pinóquio se estabelece como mais uma obra-prima na carreira de Guillermo del Toro. É um exemplo clássico de como o cinema e a ficção podem abrir margens para reflexões sobre o mundo real sem perder o ar de fantasia e de inesperado. É também uma prova pulsante de como uma história contada há mais de 100 anos tem o poder de inspirar adaptações novas que fogem do “copia e cola” dos remakes recentes da Disney.

Isso tudo sem contar que, nesse ponto de sua filmografia, é maravilhoso ver o cineasta mexicano se dedicando a uma nova estética através da animação, sem perder os traços que o tornaram um dos artistas mais celebrados da geração. E mais do que tudo, é um convite a analisarmos como a humanidade se faz presente em figuras monstruosas e, nesse caso, “inumanas”, enquanto alguns seres humanos guardam para si o cargo dos monstros.

Pinóquio é tudo aquilo que já esperávamos e mais um pouco. É uma ode à forma clássica de contar histórias e um afago no coração de quem não encontra esperanças em um mundo tão desolado por fantasmas que nos assombram há quase um século. E além de tudo isso, é um lembrete de que desobedecer fascistas é, acima de tudo, um ato de liberdade e de afirmação que faz com que nos distanciemos das marionetes, literais ou figurativas.

Nota: 4/5

Pinóquio está disponível na Netflix.

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