Crítica: Belle mostra o melhor e o pior da internet em uma história surpreendentemente delicada

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Crítica: Belle mostra o melhor e o pior da internet em uma história surpreendentemente delicada

Por Chris Rantin

Após ser aplaudido de pé no Festival de Cannes, Belle, o novo filme de Mamorou Hosada (Digimon: O Filme, Mirai, Crianças Lobo), finalmente chegou ao Brasil, através da distribuição da Paris Filmes

No longa acompanhamos a história de Suzu, uma garota tímida que lida com um grande trauma que sofreu durante a infância. Sua vida muda após entrar em U, um mundo virtual em que é possível ser quem você quiser. Livre do passado pela primeira vez em muito tempo, Suzu acaba se tornando um fenômeno global ao cantar como Belle. E é a partir deste ponto em que ela entra em uma jornada emocionante.  

No entanto, longe de ser uma história sobre a fama ou excessos da era moderna, o filme apresenta uma trama delicada e surpreendentemente profunda, que explora o melhor e o pior que a internet pode oferecer, além de uma jornada sobre perdão e amadurecimento. Tudo isso com visuais espetaculares, uma animação bem trabalhada e uma trilha sonora incrível. 

Ficha Técnica

Título: Belle (Ryū to Sobakasu no Hime)

 

Direção: Mamoru Hosoda

 

Roteiro: Mamoru Hosoda

 

Data de lançamento: 27 de janeiro de 2021 (Brasil)

 

País de origem: Japão

 

Duração: 2h 06min

 

Sinopse: Suzu é uma estudante que mora em uma aldeia rural com o pai. Por anos, ela foi apenas uma sombra de si mesma. Um dia, ela entra em “U”, um mundo virtual de 5 bilhões de membros na Internet, mas lá ela não é mais Suzu. Ela é Belle, uma cantora mundialmente famosa! Ela logo se encontra com uma criatura misteriosa e juntos, eles embarcam em uma jornada de aventuras, desafios e amor, em busca de tornarem-se quem realmente são! 

Belle está em cartaz nos cinemas.

Muito além de uma história de amor 

Do trailer aos materiais promocionais, a inspiração em A Bela e a Fera fica muito clara em Belle, trazendo vários elementos deste adorado conto de fadas para as telonas mais uma vez. Assim, temos uma jovem garota — com o mesmo “nome”, inclusive — que acaba conhecendo e se aproximando de uma fera misteriosa e sombria. Mas ainda que essas referências existam, a trama do filme segue por caminhos inesperados que enriquecem ainda mais a história, criando algo que pega bases já conhecidas e transforma em algo original e fantástico indo muito além de uma nova versão do clássico. 

Para começar, mesmo sendo mais vibrante e cheio de potencial, o mundo virtual de U, onde acontece a trama de A Bela e a Fera, não é o único aspecto explorado no filme. Muito pelo contrário. A grande protagonista da história é Suzu, não seu alter-ego que viralizou na internet, e é a vida desta jovem retraída que acompanhamos, com a história em U sendo quase como uma trama secundária.

O filme faz um excelente trabalho em aprofundar a heroína, mostrando sua infância e seus momentos mais vulneráveis, antes de entendermos como ela chegou a se tornar a grande pop star e porque isso é tão importante para ela. E então, somente depois que vemos todo esse desenvolvimento, é que conhecemos a “Fera”, quando se inicia uma verdadeira investigação para tentar compreender as motivações e a verdadeira identidade do personagem. 

Isso acaba sendo mais uma das várias decisões acertadas que o filme toma. Uma vez que, ao contar a história dessa forma, conseguimos ter um panorama muito mais emocionante e complexo, do que seria priorizar o mundo virtual ao invés de focar em Suzu no mundo real. Dessa forma, o filme consegue brilhar em sua originalidade e não se perder em histórias repetidas.

Assim, o que temos no filme vai além de uma história de amor romântico, ainda que essa trama exista, de certa maneira. É muito mais uma jornada pessoal de Suzu, que luta para encontrar a si mesma depois de um trauma. É uma narrativa profunda e mais complexa, que foca no amadurecimento, e não Bela e a Fera 2.0. 

Belle e Suzu, as protagonistas da história.

A maneira que Hosoda explora os momentos mais vulneráveis e pesados da narrativa também merece destaque. Afinal, não vemos uma história feita para chocar ou forçar a emoção no público. Os aspectos mais sombrios do filme são trabalhados com muita delicadeza e sensibilidade, o que contribui muito para a deixar a narrativa interessante. Explorando bem os momentos de calmaria e o silêncio para construir os momentos mais intensos, o filme acerta ao trabalhar os contrastes, que acontece através das músicas e de eventos mais explosivos. 

É esse contraste que define o tom do filme, aliás. Se de um lado temos a poluição visual e o exagero de U, com o jeito tranquilo e extravagante de Belle, do outro vemos paisagens mais frias e amplas do mundo real, assim como a personalidade ansiosa e insegura de Suzu. Se a garota do interior tem dificuldade para se expressar e trabalhar seus traumas do passado, Belle consegue fazer isso com facilidade, colocando toda sua emoção para fora e encantando milhares de pessoas na internet com isso. Motivo pelo qual a relação de Belle e da Fera se torna tão interessante, uma vez que ele também aparece como uma figura retraída que prefere se esconder nas sombras, algo que faz que o relacionamento entre os dois desabroche de uma forma inesperada e muito sensível.

Como se não bastasse a riqueza da narrativa, tudo isso é feito com uma animação fluída e belíssima — mesmo que simplificada em alguns pontos — fazendo com que independente do que esteja acontecendo, tenhamos um espetáculo visual. E, é claro, temos a trilha sonora fantástica, que não está ali apenas como um momento mais “leve” da história, servindo muitas vezes como uma válvula de escape emocional para que Suzu/Belle consiga colocar para fora a dor e vulnerabilidade de carrega dentro de si, bem como sua visão de mundo e a maneira que ela se relaciona com aqueles que estão ao seu redor. 

Apesar dos muitos acertos, há um ou outro elemento que não casa tão bem com a produção. A conclusão de Belle, por exemplo, parece apressada demais, o que acaba destacando um problema de ritmo no filme. O que começa com uma construção lenta e gradual, acaba se embolando para entregar grandes reviravoltas em seu final. A principal consequência disso é que eventos importantes acontecem ao mesmo tempo e acabam perdendo o seu impacto, uma vez que não há espaço para que eles sejam explorados de uma forma mais profunda — nem que suas repercussões e consequências sejam desenvolvidas. 

Outro ponto que desagrada são os personagens secundários que, de muitas formas, acabam sendo secundários demais. Os coadjuvantes da história de Suzu não possuem muita trama ou objetivo, estando ali apenas para auxiliar no desenvolvimento da protagonista, o que desperdiça a chance de contribuírem de uma forma mais ativa para a trama. Isso porque suas personalidades — talvez um tanto caricatas — é cativante, deixando aquele gostinho de quero mais e a sugestão de que eles poderiam ser melhor utilizados.  

Apesar disso, o filme, como um todo, vale muito a pena e faz com que mesmo esses pequenos deslizes se percam diante da obra completa. 

Uma chance de recomeçar 

“Você não pode recomeçar na vida real, mas pode recomeçar em U.” Essa é a premissa básica do mundo virtual que conhecemos em Belle, mas também é um conceitos que já estamos acostumados a ver em animes, séries e filmes. Dessa forma, não é possível dizer que essa ideia é realmente original, até porque, além da ficção, estamos passando por isso na realidade. 

Em um momento em que estamos cada vez mais conectados — processo que foi acelerado pela necessidade de distanciamento social dos últimos anos — vemos o surgimento de mundos virtuais como o Metaverso, que tenta conquistar seu público com a promessa de uma nova realidade. Contudo, o que faz Belle brilhar é justamente a maneira que o filme trabalha uma ideia que já está levemente saturada. 

O filme nos apresenta uma visão muito honesta do que é esse mundo conectado, sem fazer um juízo de valor ou dar uma lição de moral. Apresentando a Internet como esse mundo carregado de potencial, capaz de transformar desconhecidos em fenômenos mundiais, como também de ser extremamente violento e problemático, Belle alcança o sucesso por encontrar esse equilíbrio em sua narrativa. 

Ele não tenta te convencer de que devemos passar menos tempo conectado, nem tenta mostrar apenas as coisas incríveis que o virtual oferece. Ele apenas retrata aquilo que já sabemos: a internet pode ser a melhor coisa do mundo, aproximando pessoas e mudando vidas, mas também pode trazer o pior da humanidade à tona.  

Sem subestimar a inteligência do público, ao não simplificando sua mensagem ou tentando ser didático com o que quer dizer com a maneira que trabalha seus temas — não apenas a Internet, mas também as relações entre os personagens e o desenvolvimento emocional da protagonista — Belle se torna um filme único. Uma vez que não há a necessidade de justificar sua própria existência ou mastigar a “mensagem” que o filme queria transmitir. 

Com isso, a produção consegue ser plural em seus significados, sem precisar se limitar na tentativa de ser compreendido da mesma maneira pelos espectadores. Deste modo, Belle pode ser uma história sobre o impacto que o mundo virtual tem nas pessoas, ou sobre a superação de um trauma e a dificuldade em fazer as pazes com o passado. Assim como também pode ser sobre se permitir viver sem medo, e ajudar as pessoas, ou talvez uma trama sobre amadurecimento e sacrifício. Tudo isso está ali e pode ser apreciado (ou captado) pelo público de diferentes níveis. 

Nota 

Belle é um filme surpreendente e cheio de camadas. O que se inicia com uma trama que poderia ser batida — afinal, o que não faltam são filmes que tentam explorar nas telonas o caos mundo digital — logo se transforma em uma história emocionante e transformadora. Fugindo dos clichês, até mesmo sua inspiração em A Bela e a Fera é utilizada apenas para criar mais uma camada nessa história que consegue ser muito original, apesar das bases já conhecidas. 

Mais do que isso, Belle encanta por sua sensibilidade ao abordar temas difíceis sobre a vulnerabilidade humana. E o filme faz isso de uma maneira que não força a mão no didatismo ou na tentativa de ter uma “lição de moral”. Ele apenas conta uma história madura e delicada, sem se preocupar em transformar isso em alguma coisa ou em simplificar sua mensagem para o público. 

Para deixar tudo ainda mais fascinante, temos uma trilha sonora original que é simplesmente fantástica. Algo que não apenas se conecta com os eventos da trama e emociona os espectadores, como também contribui para as nuances da história que está sendo contada. 

Assim, nem mesmo seus aspectos mais negativos, que são pouquíssimo, conseguem tirar o brilho dessa produção belíssima. Levando tudo isso em consideração, a nota de Belle não poderia ser outra. O filme de Mamoru Hosoda leva 4,5 estrelas da Legião dos Heróis

Belle leva 4,5 da Legião dos Heróis

Belle está em exibição em alguns cinemas brasileiros.

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