Crítica: Até os Ossos disseca o grotesco e encontra beleza na violência

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Crítica: Até os Ossos disseca o grotesco e encontra beleza na violência

Por Gus Fiaux

O mais novo filme de horror de Luca Guadagnino (de Me Chame pelo Seu Nome Suspiria: A Dança do Medo) acaba de chegar aos cinemas. Em Até os Ossos, acompanhamos dois canibais que, durante uma viagem pelo meio-oeste dos Estados Unidos, descobrem uma paixão latente e avassaladora.

Com Timothée Chalamet Taylor Russell, o longa tem chamado atenção por sua atmosfera de horror e pela beleza do romance entre seus protagonistas. Nós já conferimos e aqui você pode ler a nossa crítica do filme!

Ficha técnica

Título: Até os Ossos (Bones and All)

 

Direção: Luca Guadagnino

 

Roteiro: David Kajganich

 

Data de lançamento: 1º de dezembro (Brasil)

 

Países de origem: Estados Unidos, Reino Unido e Itália

 

Duração: 2 horas e 11 minutos

 

Sinopse: Maren, uma jovem mulher, aprende a sobreviver à margem da sociedade, enquanto se apaixona pelo misterioso Lee.

Até os Ossos está em cartaz nos cinemas.

Até os Ossos e a voracidade das relações humanas

Há algo de muito bonito e tocante na forma como o horror e o romance podem se interligar, formando uma coalizão de gêneros que aborda muito bem as complexidades e nuances de sentimentos tão fortes quanto o medo e o amor. Se pararmos para pensar, algumas das histórias de amor que mais amamos têm uma pitada forte de terror, seja em A Bela e a Fera ou até mesmo em O Morro dos Ventos Uivantes.

Quando Luca Guadagnino anunciou que seu próximo filme seria uma adaptação do aclamado romance escrito por Camille DeAngelis, a recepção geral atingiu dois extremos. De um lado, fãs do cineasta italiano receberam a ideia com fervor, dispostos a ver como Guadagnino trabalharia o relacionamento de dois canibais. Por outro, quem não é muito chegado aos longas anteriores do diretor, como Suspiria: A Dança do Medo, virou o nariz.

Felizmente, o filme saiu e é tudo aquilo que já se ouvia desde sua estreia em festivais: bonito, emocionante, sensual, romântico, violento, grotesco e até mesmo nauseante. Tudo isso embalado em uma história que nos faz lembrar de como é assustador perceber que estamos apaixonados por alguém – medo esse que logo dá lugar a uma necessidade de consumir tudo que a outra pessoa é, consumir tudo até os ossos.

Na trama, Maren (Taylor Russell) é apresentada como uma jovem aparentemente comum, que vive com seu pai às margens da sociedade americana. Porém, nos primeiros dez minutos de filme já temos uma noção do segredo que ela esconde de todos, sua fome por carne humana. Quando um novo acidente faz com que ela e seu pai precisem mudar novamente de casa, ela é abandonada e precisa seguir em uma viagem solitária e angustiante.

É nesse processo que ela conhece Lee (Timothée Chalamet), um rapaz melancólico e taciturno, que compartilha dos mesmos anseios e apetites que ela. Eles decidem ficar juntos para poderem se proteger de quaisquer perigos em seu caminho, e a partir daí floresce um romance improvável entre duas pessoas bonitas, atraentes, introspectivas e, é claro, canibais.

Por mais que o foco dado recaia muito na relação dos dois, o roteiro de David Kajganich não se poupa de criar um universo amplo, onde esses seres antropofágicos vivem escondidos dos seres humanos “normais”. Eles são chamados de Devoradores e possuem uma necessidade fisiológica de comer a carne humana, além de conseguirem rastrear uns aos outros através de um olfato aguçado.

É nesse sentido que conhecemos algumas das figuras mais ambíguas e assustadoras da trama, como o excêntrico e enigmático Sully (Mark Rylance), um homem que acaba auxiliando Maren no começo da viagem e, por conta disso, desenvolve uma obsessão pela menina. Apesar de aparecer pouco, o personagem exerce uma presença ameaçadora e sinistra na trama, e toda vez que colocamos os olhos nele, sentimos que algo não está certo.

Além dele, há também Jake (Michael Stuhlbarg) e Brad (David Gordon Green), uma dupla de amigos que viajam por aí comendo gente – com um pequeno detalhe: um deles de fato é um Devorador, enquanto o outro é só um serial killer que também decidiu devorar suas vítimas. E é na força desses encontros que percebemos a hostilidade de tudo que há ao redor de Lee e Maren, o que cria uma aura de “nós contra o mundo“.

Porém, engana-se quem acha que o filme pende mais para o horror ou para o romance, enquanto deixa um dos dois gêneros em segundo plano. Pelo contrário, Guadagnino consegue entrelaçar esses conceitos de modo que a história de amor entre Lee e Maren é indissociável do rastro de sangue que eles deixam para trás. É quase como Bonnie & Clyde, mas sem a rajada de balas.

Taylor Russell, que até então já havia mostrado seu potencial dramático mesmo em obras questionáveis, tal qual o terrível Escape Room, consegue dar vida a uma mulher inteligente, observadora e por vezes arisca. “Ela é como um gato na escuridão, você não amaria amá-la?“, cantaria Stevie Nicks. Isso se contrapõe e complementa o charme brutal de Timothée Chalamet, que está na performance mais afiada de sua carreira desde Me Chame pelo Seu Nome.

A química latente entre os dois é palpável desde seu primeiro encontro – e aqui, não há o clichê típico dos romances, com esbarrões nos corredores ou o senso de “amor à primeira vista”. Os dois se encontram em um mercadinho, mas desde aquele momento há uma tensão notável no ar, uma voracidade, o cheiro do um impregnando as narinas do outro e explodindo com a força de mil sóis.

E vê-los passar por uma espiral de amor por cima de uma pilha de corpos é supreendentemente belo. É a história de duas almas desgarradas e quebradas, que lutam para encontrar um lugar no mundo que os rejeitaria de imediato se tomasse conhecimento de sua existência. Nesse sentido, é queer sem nem mesmo trazer personagens abertamente queer. Quase como uma obra de Clive Barker, mas sem toda a carga sexual escancarada, embora ela viva livre nas entrelinhas.

Ao longo de duas horas, Guadagnino nos força a conhecer essas figuras e seus passados – e não apenas isso, como também torcer por eles. Porém, é a certeza da tragédia que faz com que esse romance seja tão lindo e eterno. De certa forma, é como Titanic – só nos impactamos e amamos tanto Jack e Rose porque sabemos que o final não será tão gentil com o amor deles.

Com isso, faz todo sentido que o filme se estruture como uma grande road trip pelo meio-oeste americano, longe dos grandes centros urbanos. Isso permite a Kajganich e Guadagnino estudarem o estilo de vida de um povo simples, bem como seus costumes, preconceitos e sonhos. Também é uma forma de mostrar a evolução desse amor em um nível geográfico, com cada estado aproximando ainda mais Lee de Maren.

Porém, o que mais impressiona em Até os Ossos é seu final. Cru, violento e devastador, ele não só entrega toda a tragédia que promete desde seus primeiros minutos, como também oferece uma conclusão satisfatória para a trama fechando um dos diálogos mais intrigantes e dando justificativa para o título da obra. Poucas vezes saí tão abalado da sala de cinema esse ano.

Em suma, Até os Ossos é o tipo de filme que vai marcar quem já conhece e gosta do cinema de Guadagnino. Seja através das lentes de Arseni Khachaturan ou da trilha sonora melancólica composta por Atticus Ross Trent Reznor, temos uma obra linda e delicada que não tem medo em chafurdar no sangue e nas vísceras para entregar exatamente aquilo que promete: uma história de amor visceral.

Usando texto e subtexto em uníssono, o filme nos lembra da maravilha que é estar vivo, da finitude da vida e liga um gigantesco holofote para que possamos contemplar nossa própria mortalidade e aqueles que deixamos pelo caminho mas que, de alguma forma, continuam vivos em nós. Talvez o melhor romance do ano, e certamente um dos filmes de horror mais intrigantes e reflexivos.

Até os Ossos não é apenas uma história bonita embalada com um elenco atraente e um desenrolar cáustico. Além de tudo isso, é um estudo sobre paixões e medos através de dois canibais viajando pelos cenários mais idílicos e, ao mesmo tempo, desolados dos Estados Unidos. E para quem ainda tem um coração pulsante e cheio de vida, é um banquete delicioso em meio ao grotesco e o belo.

Nota: 5/5

Até os Ossos está em cartaz nos cinemas.

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