Dead Space: Precisamos mesmo de um remake?

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Dead Space: Precisamos mesmo de um remake?

Por Arthur Eloi

Após oito anos de hiato, Dead Space enfim ressurgiu dos mortos durante um evento da EA Games. O anúncio, porém, foi um pouco diferente do esperado. Ao invés de algum tipo de continuação ou outro projeto dentro da franquia, o game será um remake do título original, de 2008, que foi apresentado com um único trailer de computação gráfica e algumas frases vagas. É certo que o projeto tem bastante potencial, mas a questão a ser levantada é: Dead Space precisa mesmo de um remake?

Sempre que uma pergunta do tipo é feita, é muito comum ouvir respostas do tipo “joga quem quer” ou então “nenhum jogo precisa existir”, mas afirmações do tipo trazem um certo conformismo que apenas desvia de reflexões incômodas sobre o estado atual da indústria de games e, sim, sobre os hábitos dos jogadores.

O retorno do survival horror

Não há dúvidas que o remake de Dead Space é motivado pela reinvenção de Resident Evil 2 – mas o contexto de ambas as obras é muito diferente

O horror nos games foi moldado por franquias de peso, mas é certo dizer que, por volta da década de 2010, os grandes estúdios não estavam mais dando conta de fazer bons jogos de terror. Enquanto Silent Hill chegava no fundo do poço, e Resident Evil abraçava de vez a ação, eram títulos menores como Outlast e Amnesia que satisfizeram a sede de sangue e sustos dos jogadores.

Na metade da década, praticamente só a Capcom conseguiu se reinventar através do excelente Resident Evil 7 – que, por sua vez, bebeu muito dos elementos e tendências da cena independente, além de testar a recepção do público com um retorno à experiência de sobrevivência nos títulos Revelations.

É importante citar o caso de Resident Evil pois é o remake do seu segundo game, lançado em 2019, que serve como catalisador para o retorno de Dead Space. A reinvenção de Resident Evil 2 foi tanto um sucesso de crítica quanto de vendas, se tornando um dos títulos mais rentáveis para a Capcom, e também um dos mais assustadores e memoráveis games dos últimos anos. O caso, porém, é muito diferente da franquia da EA Games.

O Resident Evil 2 original foi lançado em 1998, época em que jogos 3D ainda davam seus primeiros passos – tanto em tecnologia quanto em design. É óbvio que o game de PlayStation 1 esteja datado nos dias de hoje, afinal representa uma indústria que ainda desenvolvia sua identidade e linguagem. Não são todos que vão conseguir apreciar a experiência clássica, mas ela se mantém altamente refinada para quem abraçar a mentalidade e o contexto em que foi feita. Para quem quiser entender a essência do clássico, mas em uma obra completamente original em ritmo, ambientação e narrativa, o remake entrega isso com maestria e confiança.

Dead Space é, para todos os fins, um jogo moderno. Quando foi lançado em 2008, os videogames já haviam uma linguagem definida. A forma como as cenas são dirigidas, como a narrativa é apresentada e desenvolvida, como os sustos são posicionados, e como o jogador interage com esse mundo não eram exatamente revolucionárias, mas sim derivadas de outros shooters da época, como Gears of War.

De lá para cá, o cenário não é tão diferente. Os visuais são mais fotorrealistas, e no mundo pós-The Last of Us, há certo apego pela linguagem cinematográfica nos games, mas nada tão drasticamente contrastante em termos de mecânicas e narrativa. A tecnologia realmente deus saltos enormes ao longo desses 13 anos, mas a linguagem dos games – em termos de design e jogabilidade – caminhou sem muita pressa.

Quem tem medo de se arriscar?

Crash Bandicoot voltou com remake e continuação – mas isso não impediu que o estúdio Toy for Bob fosse realocado para trabalhar em Call of Duty. Assim funciona o desenvolvimento de blockbusters dos games

O mesmo conformista que releva o anúncio de mais um remake o justifica através de, claro, dinheiro. Sim, estúdios de games buscam vender produtos e obter lucro como qualquer outra indústria, mas isso soa como um argumento simplista para não questionar práticas ruins e tendências que, infelizmente, tomaram conta dos games nos últimos anos. Afinal, se aquela velha discussão de “games são arte?” enfim encontrou uma resposta positiva, discutir a estagnação criativa do meio agora é necessário.

Nas últimas décadas, o custo de desenvolvimento de games decolou. Os blockbusters que antes eram feitos por equipes modestas agora precisam de verdadeiros exércitos de desenvolvedores. É só olhar para franquias como Call of Duty, um monstro de fome insaciável que faz com que a Activision dedique a atenção de todos os seus estúdios na tentativa de garantir que a máquina de dinheiro nunca pare. Com investimentos maiores, se tornam necessários retornos colossais. Jogos blockbuster, também chamados de Triple A, precisam agradar a todo tipo de público, na esperança de pagar suas contas e tirar um troco.

Nesse contexto de polarização entre os Triple A e os projetos independentes, não é um exagero dizer que a indústria de games criou um certo medo de se arriscar. Quando há a necessidade de retornos colossais, a experimentação de ideias ousadas e desenvolvedores mais inexperientes se tornam inadmissíveis para grandes empresas. Isso é especialmente válido para Dead Space.

Ainda que seja uma franquia amada pelos fãs de terror, a saga está parada desde 2013, ano em que Dead Space 3 despertou a ira do público pela sua pegada mais de ação e introdução de microtransações. É certo que a EA ouviu a vocal demanda por um novo título, mas ainda teme entregar algo que não seja um fenômeno absoluto. Assim, após o sucesso do retorno de Resident Evil 2 e Resident Evil 3, a solução foi simples: reinventar o original, como uma forma de simultaneamente testar o interesse do público e uma nova visão para a série.

A abordagem mais parece com a de Crash Bandicoot, que recebeu a excelente coletânea de remasterizações N.Sane Trilogy antes de ganhar uma sequência oficial. Mas não é porque algo deu certo – em recepção e vendas – que está imune à críticas. Com medo de se arriscar e gastar dinheiro, os estúdios passaram a apostar no seguro, monetizar a nostalgia e entregar esforços mais contidos. O problema é que o público abraçou a tendência… mas, exatamente, onde está o problema nisso?

Em busca dos clássicos perdidos

Existe interesse em conhecer clássicos: o sucesso da retrocompatibilidade do Xbox é a prova disso

Há bastante verdade no argumento de “joga quem quer”. De fato, cada uma sabe como investir seu tempo e dinheiro, mas a naturalização dos remakes como obras necessárias cresce a partir de respostas fáceis do tipo. Ao invés disso, vale levantar a discussão sobre a importância de revisitar ou conhecer jogos mais antigos.

Toda a indústria do entretenimento se estabelece em cima do hype, mas os games levam isso ainda mais longe do que o cinema ou a televisão. É só olhar para o The Game Awards, por exemplo. Videogames são o único meio em que sua grande premiação e celebração da indústria divide espaço anúncios de novos produtos. O mérito de premiações é altamente discutível (como Josef Fares, diretor de No Way Out e It Takes Two, bem expressou durante um TGA), mas é minimamente curioso quando o público parece se importar mais com os comerciais do que com os vencedores de cada categoria. A indústria de jogos é tão utilitária como o tão falado trem do hype: cada lançamento é como uma breve estação, mas o objetivo é sempre seguir em frente.

Muita coisa fica pelo caminho neste constante movimento. Em uma delas, o repertório do público. Grandes obras de gerações passadas costumam ficar inacessíveis na troca de consoles, se tornando raridades para colecionadores ou joias raras a serem encontradas por gamers mais aventureiros. Salvo pelo PC, que é uma única plataforma em eterna expansão, ou pelo Xbox, que recebeu excelentes opções de retrocompatibilidade, as próprias empresas querem que o público tenha seus jogos favoritos apenas na memória. Assim se torna mais fácil vender a mesma coisa duas vezes, no máximo dando apenas um tapa no visual.

Não deveria ser assim. É claro que as empresas e fabricantes de consoles têm grande parcela de culpa, mas os hábitos do público também precisam ser questionados. Na era dos remakes e dos vários problemas de preservação de obras clássicas, é a hora perfeita para pisar no freio do hype, ajustar as próprias expectativas e mergulhar de cabeça nas vastas bibliotecas de games do passado.

Sim, mecânicas antigas ficam um pouco engessadas, e gráficos datados assustam, mas é preciso um esforço para entender o contexto em que cada jogo foi confeccionado, e assim ter entendimento mais rico da evolução do formato ao longo das décadas. É um esforço que não pode surgir apenas da nostalgia, mas sim da curiosidade e do amor aos videogames.

No caso de Dead Space, esse esforço nem é tão grande assim. A jogabilidade continua satisfatória, os sustos ainda são impactantes, e a atmosfera é tão claustrofóbica e sufocante quanto era em 2008. Como em toda obra, há trechos que dividem os fãs, e também uma trama que não vai agradar a todos – e tudo bem.

Versão original de Dead Space continua igualmente assustadora, atmosférica e boa de jogar até hoje

Dead Space, assim como todo produto cultural, é construído por erros e acertos, e cabe ao público apreciar ambos. É ainda mais fácil considerando que o game original não só foi lançado para três plataformas, como também está disponível no PC e também nos Xbox One e Series S | X através da retrocompatibilidade. Se não fosse o bastante, toda a trilogia de horror ainda está incluída no catálogo do EA Play, que integra a assinatura do Xbox Game Pass para console e computador. Diferente das versões originais de Resident Evil 2 e 3, Dead Space é mais acessível do que nunca.

Vale pontuar que nada disso significa que o remake será ruim. Muito pelo contrário, é certo que a EA Games terá cuidado e carinho em reimaginar desgraças aterrorizantes para o coitado do protagonista Isaac Clarke. No melhor dos cenários, o novo Dead Space definirá uma nova visão para a franquia, que poderá ressurgir dos mortos após ter sido assassinada pela própria EA (que é história para uma outra matéria, claro). No pior dos casos, sempre há esperanças em The Callisto Protocol, vindouro survival horror desenvolvido por veteranos da Visceral Games, o estúdio que criou Dead Space, com direção por Glen Schofield, cocriador da franquia.

Mesmo assim, a insistência em um remake ao invés de criar algo original serve apenas como lembrete de que a indústria de games, em sua busca ambiciosa por dinheiro, se torna cada vez mais covarde, e que os jogadores têm voz ativa nesse processo – seja para impedir o avanço dessa tendência, ou abraçar de vez a sua naturalização.

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