Crítica: Missa da Meia-Noite, da Netflix, mistura horror e fé em narrativa melancólica

Capa da Publicação

Crítica: Missa da Meia-Noite, da Netflix, mistura horror e fé em narrativa melancólica

Por Gus Fiaux

Um dos diretores em maior ascensão no cosmos do horror, Mike Flanagan já havia nos surpreendido quando nos apresentou dramas humanos e tocantes envolvidos em uma embalagem fantasmagórica e espectral em A Maldição da Residência Hill A Maldição da Mansão Bly, as duas “temporadas” de sua antologia que adapta e reinterpreta livros clássicos de assombrações e casas mal-assombradas.

O cineasta, que já lançou nos cinemas obras emblemáticas como O Espelho e Doutor Sono, agora retorna à Netflix com Missa da Meia-Noite, seu projeto mais pessoal e intimista. Na série, um jovem com um passado sombrio e trágico retorna para casa após anos preso, ao mesmo tempo em que um novo padre chega à cidade, profundamente alterando a vida de toda uma comunidade local.

Abaixo, confira a crítica da minissérie:

Ficha Técnica

Título: Missa da Meia-Noite (Midnight Mass)

 

Criador: Mike Flanagan

 

Roteiro: Mike Flanagan, James Flanagan, Dani Parker, Jeff Howard e Elan Gale

 

Direção: Mike Flanagan

 

Ano: 2021 (Netflix)

 

Número de episódios: 7

 

Sinopse: A história se passa em uma ilha isolada povoada por uma pequena comunidade que já enfrenta algumas cisões internas e se vê ainda mais dividida com a volta de um jovem desafortunado e a chegada de um padre carismático.

Missa da Meia-Noite, nova série de Mike Flanagan para a Netflix.

Missa da Meia-Noite mistura horror e fé em narrativa melancólica

“Se, pois, alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo aí! não acrediteis; porque hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os escolhidos”. Essa passagem bíblica é encontrada no Livro de Mateus, Capítulo 24 e Versículos 23 e 24. De muitas formas, é um alerta contra aqueles que deturpam a palavra de Deus e posam como profetas do Senhor, ainda que só tragam mentiras e destruição.

Missa da Meia-Noite, a nova minissérie de horror do Mike Flanagan, é basicamente sobre isso – sobre como uma comunidade fervorosamente cristã pode sucumbir aos efeitos e às mentiras de um falso profeta por conta de “milagres” e “atos sagrados”, ainda que eles sejam cometidos da forma mais brutal e violenta. Mais do que isso, é uma grande exploração de como o luto, a culpa, a intolerância e o fanatismo podem nos afastar de nossa fé, ainda mais quando entra em jogo a institucionalização das religiões.

Após ter feito todo mundo morrer de chorar com A Maldição da Mansão Bly, série que usa fantasmas para tratar de amores perdidos, Flanagan retorna em uma narrativa íntima e pessoal. Aqui, ele conta a história de Riley Flynn, um homem que passou anos em cárcere e finalmente retorna para seu lar, a ilha de Crockett, localizada próximo ao litoral de Washington, nos EUA. Enquanto isso, acompanhamos como a chegada de um novo padre, Paul Hill, altera toda a cadeia hierárquica da ilha, transformando sua comunidade em um exército.

Parte horror sobrenatural com doses de melancolia, parte reinterpretação do Apocalipse, o Livro das Revelações, Missa da Meia-Noite vem para mostrar como Flanagan é um dos melhores representantes do horror no cenário atual – tanto por ser um diretor que não tem medo de entrar no gênero (pode deixar o “pós-horror” do lado de fora da igreja, obrigado) como por se aprofundar em como o horror tem uma forte responsabilidade de lidar com medos e traumas humanos por excelência.

Em Missa da Meia-Noite, Hamish Linklater interpreta o padre Paul Hill, recém-chegado à Ilha Crockett e com um grande segredo.

“O que acontece no pós-vida?”

Um dos grandes desafios da minissérie é apresentar um grupo bem cativante de personagens e explorá-los não como indivíduos, mas como engrenagens em uma grande máquina representada pela comunidade de Crockett. Para isso, o cineasta usa de vários artifícios para compor essas figuras e suas dinâmicas interpessoais. Em uma era definida pelo TikTok, onde tudo tem que ser “rápido para fisgar a audiência”, esse trabalho pode afastar quem não tem disposição de acompanhar sete episódios de uma hora – mas por mais que a narrativa seja lenta, ela passa longe de ser arrastada ou escassa de eventos.

Os personagens são trabalhados com muita parcimônia e demoram para evoluir, mas esse processo lento reforça a transição do pacato para o macabro. Destaca-se também os vários monólogos ao longo da trama – nas mãos de qualquer diretor, eles seriam apenas intransigentes e exaustivos, mas aqui há um tom tão complexo e profundo nas discussões levantadas que é impossível não ver isso como uma construção magistral – destaca-se o momento no quarto episódio onde Riley (Zach Gilford) e Erin (Kate Siegel) conversam sobre o que pode acontecer no pós-vida.

E para fazer isso funcionar, necessita-se de um esforço coletivo envolvendo o diretor, os departamentos de produção e, principalmente, os atores. Felizmente, Flanagan escolhe a dedo um elenco poderoso. Zach Gilford brilha no papel de um protagonista marcado pela tragédia, mas todos funcionam bem. Os principais destaques vão para Hamish Linklater, Kate Siegel, Rahul Kohli Samantha Sloyan.

Hamish (Legion) faz o papel do “bom padre”, mas carrega isso com uma complexidade sem tamanhos. Talvez seja o papel mais marcante da carreira do ator, que consegue dar a ele um toque dúbio e cheio de camadas. Siegel (Hush: A Morte Ouve) mostra que não está ali apenas por ser esposa do criador – a atriz já havia se provado anteriormente em Residência Hill, mas aqui dá uma interpretação digna de prêmios (isso se as premiações televisivas não fossem tão caretas a ponto de ignorar completamente o terror como um exercício válido da arte).

Kohli (iZombie) interpreta Omar Hassan, o xerife da cidade – que, apesar de sua autoridade, se vê encolhido por ser um homem muçulmano em uma ilha predominantemente católica, rendendo um debate interessante de como o “amor ao próximo” virou “ódio ao outro”, deturpando o significado da palavra de Deus. E por falar nisso, Samantha Sloyan é quem brilha no papel de Bev Keane, uma mulher fervorosa que age como zelote fanática, disfarçando sua sede de poder e de autoridade como um “amor divino”. Não é muito diferente do que já vemos no nosso cotidiano.

Kate Siegel e Zach Gilford interpretam Erin e Riley, duas pessoas com um passado juntas e que finalmente estão se reencontrando.

A falência de uma comunidade

Ao longo de seus sete episódios, Missa da Meia-Noite se mostra bem preocupada em retratar a falência de uma comunidade e como o fanatismo não apenas é prejudicial para quem está “do lado de fora” de uma religião, mas também para os próprios indivíduos que seguem essa prática – afinal de contas, todos começam a se engolir quando o amor é esquecido e dá lugar a um capricho humano.

Nesse sentido, é muito interessante observar como os sete episódios apresentam um arco próprio não só para os personagens, mas para a própria Ilha Crockett em si. Quando começa, a comunidade passa por vários problemas e há uma nítida escassez de alimentos, de recursos e inclusive, de fé. Após a chegada do padre milagreiro, a Ilha passa por uma transformação, voltando à glória dos dias prósperos – apenas para que vejamos toda essa estrutura entrando em colapso quando a mesquinharia humana dá as caras.

Isso até se comunica com o “fator divino” da série pois mostra como as pessoas estão cansadas de acreditar em algo que elas não veem. Quando um “milagre” é realizado por mãos humanas, o clamor deixa de ser nos céus e passa a ser na carne, no humano e no mundano – ainda que as pessoas se enganem a ponto de dizer que é um “sinal de Deus“. E Flanagan está muito consciente disso ao retratar como o Padre Paul deixa de ser um “emissário da palavra” para se tornar uma divindade em si, um ídolo.

E poderia ser algo simples, se não fosse o fato de que o próprio padre se deixa cair nas mãos de outro “falso profeta”. Sem dar muitos spoilers da trama, Missa da Meia-Noite acaba funcionando como um cruzamento entre Paraíso Perdido, do John Milton com Salém, do Stephen King. E isso só funciona bem porque nós, como fãs do horror, entendemos as codificações que ele quer trazer, especialmente após o terceiro episódio, que introduz novas camadas sobrenaturais à narrativa.

Missa da Meia-Noite explora como uma comunidade pode falir por completo.

Ah, o horror…

E por sinal, o horror sabe exatamente onde causar impacto. Apesar dos contornos sobrenaturais e de todos os medos que isso pode causar, Missa da Meia-Noite se aproveita de um medo muito mais intrínseco: o humano. Flanagan não poupa de mostrar como essas pessoas, que são calmas e educadas, se transformam em verdadeiros monstros uma vez que se sentem autorizados a isso – e pior, enquanto acreditam fielmente que seus atos hediondos servem como passagem garantida para o Paraíso.

Mas apesar desse ponto, o que mais sobressai é como a série sabe dar contrastes entre essas figuras. O jogo de luz e sombras funciona bem não apenas na fotografia, mas também nas dimensões psicológicas e espirituais dessas pessoas – que em um momento, são devotos fanáticos e intolerantes e no outro, se solidarizam com seus entes queridos e até mesmo com desconhecidos.

Essa é a forma de Flanagan falar que o ser humano não é mau por natureza, mas ele é falho e facilmente corrompido. Isso atinge um ápice surpreendente no sexto episódio, o melhor da série – e onde mais se concentra o horror que tantos esperam. O resultado é uma autocrítica difícil, dolorosa e agridoce, que nos faz pensar sobre nossos próprios conjuntos de crenças, nossa humanidade e mortalidade e, principalmente, o que fazemos para tornar o mundo um lugar melhor.

Com tudo isso a ser dito, Missa da Meia-Noite se junta aos grandes trabalhos de Flanagan, como Residência Hill Mansão Bly. O criador se superou mais uma vez, mostrando que para ele o horror nunca é apenas uma ferramenta para criar tensão ou dar sustos, mas sim uma forma de analisarmos o abismo na nossa alma e entendermos como podemos superá-lo diariamente. Tanto terapêutica quanto apavorante, sua nova minissérie transforma a Ilha Crockett em uma parada obrigatória não apenas para qualquer fã do gênero, mas também para qualquer um disposto a entender o divino e como isso é transformado em profano por uma sociedade hipócrita.

Nota: 5/5

Missa da Meia-Noite está disponível na Netflix.

Abaixo, veja também outras 10 séries de terror para assistir na Netflix: