Crítica: Encanto transforma sentimentos reprimidos em melodia em musical raiz da Disney

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Crítica: Encanto transforma sentimentos reprimidos em melodia em musical raiz da Disney

Por Gabriel Mattos

Encanto, o novo longa da Disney, é fruto da parceria entre o estúdio mestre em animações e a sensibilidade musical de Lin-Manuel Miranda, o gênio por trás de Hamilton e Tick, Tick… Boom (Netflix). O filme estrelado por Stephanie Diaz, no original, é uma carta de amor à Colômbia e homenageia o povo latino.

Aproveitando os talentos de seu compositor de mão-cheia, esta é a animação da Disney que segue mais à risca a fórmula dos musicais, abusando de construções líricas similares a grandes clássicos da Broadway para explorar os dilemas da comunicação, expectativas e o peso da herança latina. Depois de assistir o longa, trazemos a nossa crítica sobre o que você pode esperar da história.

Ficha Técnica

Título: Encanto

 

Direção: Byron Howard, Jared Bush

 

Roteiro: Jared Bush, Charise Castro Smith

 

Músicas: Lin-Manuel Miranda

 

Data de lançamento: 25 de novembro de 2021

 

Duração: 1h 39min

 

Sinopse: Nascida em uma família de superpoderosos, uma jovem sem poderes precisa descobrir uma forma de salvar a herança mágica de sua família enquanto investiga o mistério de seu tio perdido.

Encanto – Pôster Nacional

O encanto dos ritmos latinos

Diferente da maioria dos títulos da Disney que envolvem uma grande jornada, Encanto se concentra em contar apenas a história da família Madrigal. Eles moram em uma casa mágica e todos têm habilidades especiais, menos a Maribel, que sofre para encontrar o seu lugar neste lar. Mas quando os poderes de todos começam a ruir, ela pode ser a chave para levar a sua família para a salvação… Ou a perdição.

Ainda que possua todo o escopo de uma história da Disney, Encanto não se propõe, em momento algum, a ser uma extravagante aventura de ação. Pelo contrário, os roteiristas tem o bom senso de manter o foco em sua maior preciosidade que é esta extraordinária família e as relações entre os personagens. Esqueça as grandes epopeias — a jornada em Encanto é emocional.

E isto não poderia ser mais evidente do que em suas grandiosas canções, que não soam como nada que a Disney já produziu. Nenhuma música foi escrita para se tornar um grande hit pop a ser repetido nas rádios a exaustão. Cada letra foi cautelosamente lapidada para carregar um breve vislumbre de como é estar na mente de cada personagem, resolvendo os conflitos emocionais do roteiro em coloridos espetáculos visuais.

Família Madrigal mostra suas verdadeiras cores a cada nova canção

Além de explorar ao máximo os poderes de cada personagem, toda música é imbuída com sua personalidade, navegando por ritmos latinos diversos que carregam a identidade de cada membro da família. O casal Pepa e Félix, por exemplo, traz o ardor de um tango, enquanto Dolores marca presença com um rap. A variedade sonora evita que o filme caia na mesmice, aumentando as expectativas a cada nova canção.

Jornadas do coração

Acima de tudo, as letras trazem sempre uma grande revelação sobre a personagem em questão ou seu dilema, fazendo que nenhuma canção soe como uma perda de tempo. Tudo que acontece nos números musicais move a narrativa para uma nova direção, trazendo uma poderosa catarse que vai ressoar com diferentes pessoas.

Afinal, não é uma questão de perspectiva, mas de expectativa. Toda a ideia dos poderes funciona como uma analogia para as cobranças sociais que seus respectivos portadores sofrem — a força de Luiza reflete como esperam que carregue todas as responsabilidades e a cura de Julieta é uma expressão de seu papel matriarcal. Atrelando os poderes aos sentimentos, o filme converte as questões mais humanas do elenco em algo visual: uma solução elegante para tornar conceitos abstratos facilmente digeríveis para crianças.

Poderes são mais uma representação da emoção dos personagens

Essa tentativa de construir um drama profundo e acessível é um dos maiores desafios dos roteiristas e, enquanto na área musical isto é resolvido de maneira esplendorosa, as partes mais sóbrias sofrem um pouco para se manter interessantes. Fora dos números musicais, a personalidade do elenco é muito mais contida. E quando você tira a magia das canções de Encanto, o roteiro não é exatamente a coisa mais original.

Um furacão de flores… saturadas

A essência da história está no conflito de gerações típico das famílias latinas, algo que a Disney conseguiu explorar com maior sucesso em Viva – A Vida é Uma Festa, um dos mais emocionantes filmes da Pixar. A casa que se adapta a seus moradores para refletir seu estado emocional remete a Steven Universo, animação famosa por trabalhar relacionamentos de forma didática. E nem preciso falar da mensagem principal de “seja você mesmo”, “siga seu coração”… Mais batida, impossível!

A premissa não parte de um conceito particularmente inovador ou interessante, mas ainda rende momentos bem empolgantes que surgem das situações em que os produtores estão encurralados em busca de um jeito de tornar suas cenas mais interessantes. O cenário, por exemplo, que poderia ser tedioso por se resumir apenas a uma casa, acaba se provando vivo e variado graças a quartos místicos que mais parecem portais para outras dimensões.

O mistério do Bruno mantém o interesse na narrativa tênue

Outra sacada genial é o mistério que cerca o personagem do Bruno, que acaba pairando por toda a narrativa como um verdadeiro fantasma. Além de refletir o tom do próprio personagem, encaixa bem na narrativa dos demais membros da família Madrigal. Afinal, o primeiro contato do público com o personagem é pela lente nada imparcial da família, que guarda um tremendo rancor por sua figura. Então, de certo modo, até sua revelação, recebemos peças manchadas de um quebra-cabeças e somos desafiados a construir nossa própria resposta — um surpreendente contraste à natureza mastigada e passiva do enredo.

Mas nem uma infinidade de sacadas geniais seriam o suficiente para amenizar a maior decepção da narrativa. Todos os esforços em construir uma história madura, incluindo a emocionante montagem que revela o passado da Abuela próximo do final, acabam tendo seu impacto diminuído pelo desfecho da história.

Para um enredo que aposta na capacidade dos menores de entender as nuances das emoções humanas, é estranho que o final acabe sendo afetado por uma necessidade de priorizar o lado lúdico, mesmo que isso mine as transformações mais importantes para seus personagens. É lamentável que este, que poderia ser um dos dramas mais impactantes da Disney, acaba sendo reduzido a uma história bonitinha por motivos externos a trama.

Nota: 4/5

Dito isso, Encanto consegue estar a altura das maiores produções recentes da Disney, como Frozen 2 e Moana. Trazendo músicas dignas dos espetáculos da Broadway, o filme captura a essência de uma típica reunião de família latina. Nós podemos ser barulhentos, cabeça dura e brigar o tempo todo, mas quando a situação aperta, estamos dispostos a colocar as diferenças de lado, tentar nos entender para prosperar em harmonia… Até o próximo grande desentendimento. Mas normal, isso é coisa de família.

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