Por que “Coringa” está causando tanta polêmica?

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Por que “Coringa” está causando tanta polêmica?

Por Gus Fiaux

Em 2019, a DC Comics decidiu comemorar os 80 anos do Batman de um modo bem… inusitado. Em vez de um filme solo do personagem, a editora trouxe ao mundo o primeiro longa-metragem inteiramente focado no Coringa, um dos maiores vilões das histórias em quadrinhos – e definitivamente, o arqui-inimigo do Cavaleiro das Trevas.

O filme homônimo do personagem, dirigido por Todd Phillips e protagonizado por Joaquin Phoenix, está causando um grande burburinho ao redor do mundo – mas principalmente nos Estados Unidos. Até agora, o longa já foi exibido em alguns festivais internacionais de cinema, rendendo alguns prêmios e a certeza de indicações para o Oscar.

Porém, há um lado mais “polêmico” de toda a repercussão do filme. Um lado que surgiu na imprensa e já se tornou tema de debate entre fãs, leigos e até mesmo figuras influentes da indústria cinematográfica.

Afinal de contas, Coringa é um filme “perigoso”?

Para entender isso, é necessário refletir um pouco a respeito do contexto que carrega o longa-metragem do personagem, e por que ele se tornou um alvo de críticas mesmo antes de sua estreia.

Basicamente, as primeiras reações “preocupadas” em relação ao filme surgiram pouco após sua exibição no Festival de Veneza e no Festival de Toronto, dois grandes festivais internacionais de cinema que servem como “termômetro” para o Oscar.

Apesar de ter sido ovacionado pelos presentes – tendo inclusive recebido o Leão de Ouro, o prêmio máximo de Veneza –, o longa gerou algumas controvérsias quando alguns críticos que assistiram ao filme expressaram um certo descontentamento em ver Arthur Fleck – a identidade desta nova versão do personagem – sendo tratado como uma “vítima da sociedade”, um pária criado pelo ambiente ao seu redor.

Com isso, muitos começaram a debater a respeito de como o filme poderia glorificar a violência e transformar seu personagem em um mártir, em vez de uma figura vilanesca – como ele é nas HQs, um agente do caos e da desordem.

Outro fator que trouxe a polêmica à tona é a identificação que o personagem tem gerado com grupos de incels na internet, já se tornando inclusive um símbolo em diversos chans e fóruns espalhados por aí. Para quem não sabe, incel é uma redução da expressão “involuntary celibate” – ou, em tradução literal, “celibatário involuntário”.

Esse é um grupo que tem ganhado mais adeptos, especialmente em fóruns privados e em grupos virtuais. São majoritariamente constituídos por homens brancos que se sentem “menosprezados” por mulheres, que eles acusam de serem “interesseiras” e “naturalmente cruéis”.

Isso é apenas uma desculpa para propagar machismo e misoginia – o que não falta na internet. No entanto, o grupo está chamando atenção devido aos perigos que traz. Desde 2014, já foram registrados quatro tiroteios provocados por incels – além de assassinatos e outros crimes isolados, resultando em mais de 45 mortos, só nos Estados Unidos.

No entanto, o grupo usa os assassinos como mártires e “símbolos de luta”. O maior exemplo disso se dá em Elliot Rodger, o primeiro assassino em massa associado aos incels. Em maio de 2014, ele matou 6 pessoas (e feriu outras 14), antes de tirar sua própria vida em uma universidade da Califórnia.

Ele chegou a deixar para trás um bilhete de suicídio, onde se dizia reprimido e que “se vingaria” de todas as mulheres que já o rejeitaram. Até hoje, a figura de Rodger é endeusada como um mártir incel.

Considerando que, devido a essas atitudes e crimes, o grupo tem se tornado uma ameaça à segurança pública, várias organizações já estão atrelando os incels às listas de grupos de ódio, que também são compostas por organizações que propagam ódio às minorias e produzem terrorismo doméstico nos EUA.

E o que Coringa tem a ver com isso? Como dito anteriormente, muitos incels estão usando o personagem como um símbolo. E com isso, surge a preocupação de que o filme possa trazer uma série de atentados terroristas e tiroteios.

Embora pareça uma ideia muito exagerada, alguns serviços de inteligência da polícia norte-americana estão identificando ameaças nos fóruns virtuais, como bem aponta o site Dallas Observer. E embora algumas autoridades tentem abafar o caso, dizendo que não há motivos para se preocupar, isso não muda o fato de que o exército norte-americano está em alerta para possíveis tiroteios durante o período de exibição do filme no cinema.

E isso nos traz diretamente a julho de 2012, quando um cinema no Colorado foi alvo de um terrorista que matou doze pessoas e feriu mais de setenta. A tragédia no Cinema Aurora é um dos casos mais assustadores de violência nos EUA, e tudo isso aconteceu em uma sessão de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge.

O culpado pelo massacre foi James Eagan Holmes, um homem com distúrbios psicológicos, que foi posteriormente sentenciado a passar o resto de sua vida na cadeia. De acordo com Raymond Kelly, um dos comissários da polícia responsáveis pelo caso, Holmes teria dito que “era o Coringa”, alegando que suas motivações foram baseadas no personagem.

A repercussão desse atentado foi tão grande que, agora, as vítimas sobreviventes do massacre, chegaram a fazer uma carta aberta para a Warner Bros. e para os realizadores do filme, propondo o debate a respeito de como o longa pode influenciar uma parcela da população a cometer atrocidades, como Holmes o fez em 2012.

Embora o estúdio tenha respondido de uma forma pacífica, alegando que o filme não tem a intenção de provocar nenhum novo massacre – e tampouco glorificar a violência –, a equipe de produção tem alimentado uma série de polêmicas. Joaquin Phoenix já chegou a abandonar uma entrevista ao ser questionado sobre o assunto, e o diretor Todd Phillips prefere apontar os dedos para todos os lados, culpando a militância e o “politicamente correto” pelas críticas que o filme tem recebido.

Mas até que ponto isso é uma responsabilidade exclusiva deles?

Por mais que o filme tenha levantado grandes preocupações, nós simplesmente não podemos atribuí-lo como uma causa direta para quaisquer hipotético massacre que possa vir a ocorrer.

Essa ideia de que um filme pode ser a causa de violência é um pensamento simplista e equivocado, que se conecta diretamente às diversas reportagens sobre “como os videogames tornam pessoas violentas”, o que é uma bela de uma falácia já desmentida diversas vezes.

A arte não precisa, necessariamente, se justificar e ser um produto “belo” e “moral”, o que torna a ideia de que o filme seja o causador de todos os problemas um mero paliativo para o verdadeiro problema: a discussão a respeito da violência, da liberação de armas e da falta de segurança pública.

Jogar a culpa em um filme, jogo, série de TV ou quadrinho é apenas uma forma de retomar a censura e desviar a atenção de onde reside os verdadeiros males que precisam ser combatidos. É uma distração.

Ainda assim, não podemos negar que toda a arte é política. Seja filme, série, música ou até mesmo pintura, tudo é feito levando-se em conta o contexto da época em que foi produzido, ou a opinião de seus criadores. E como é um produto a ser difundido em massa, a arte também tem suas responsabilidades.

As recentes declarações de Phillips e Phoenix estão deixando de lado um debate extremamente necessário e que precisa acontecer a respeito da glorificação da violência e da crescente onda de atentados e massacres que podem vir a ser “inspirados” pelo Coringa – por mais que o filme, como disse anteriormente, não tenha um pingo de parcela de “culpa” nisso.

Quanto ao público nerd, fica ao menos o convite para reflexão a respeito de como isso pode atingir nossas vidas. Está sendo bem comum ver, nos comentários, pessoas menosprezando a preocupação alheia – e inclusive, aqui mesmo na Legião dos Heróis, há diversas pessoas que até mesmo ridicularizaram a carta feita pelos sobreviventes do Cinema Aurora.

Por vivermos no Brasil, temos uma cultura diferente dos Estados Unidos – um país que sofre com uma média de, pelo menos, um massacre com armas de fogo por dia de acordo com um censo feito pelo Gun Violence Archive, um site que contabiliza massacres e vítimas anuais nos EUA. (Claro que não estou desconsiderando os inúmeros massacres vindo de confrontos policiais e subprodutos do tráfico de drogas, mas o ponto aqui são massacres em escolas, em cinemas e locais públicos).

Como a maior parte das críticas estão vindo de lá, de pessoas preocupadas com suas próprias vidas, precisamos, no mínimo, ter empatia suficiente para entender o questionamento e a preocupação, e nos perguntar se as críticas negativas em relação a um filme são realmente tão terríveis, quando um debate dessa escala se mostra necessário para que possamos definir as causas e os motivos desse tipo de atrocidade.

Mais uma vez, reitero que Coringa não é, por si só, um filme perigoso. Os perigos que o longa atraem derivam diretamente das pessoas que entraram em contato com ele – se são pessoas insanas, ou que já tem o desejo por cometer alguma atrocidade –, mas não há como não levantar o debate sobre a glorificação e sobre a representação de um criminoso insano como uma “vítima da sociedade”.

E mesmo que não tenhamos um indício claro de que algo ruim pode acontecer, isso não significa que as pessoas e empresas já não estão se precavendo. Como visto anteriormente, o exército americano está em alerta e redes de cinema também estão tentando encontrar formas de proteger o público, seja através de declarações oficiais ou até mesmo por proibições cautelares.

Apesar de tudo isso, Coringa está aí. Independente das polêmicas, o filme vai estrear e precisamos estar atentos ao que as pessoas tem a dizer em relação às suas vivências. E embora muitos estejam revoltados com as críticas que o filme tem recebido, agora é a hora de aproveitar para incentivar o debate e a discussão, e como podemos usar a arte para aprender algo sobre a vida.

 

Na galeria abaixo, fique com cartazes do filme:

Coringa já está em cartaz nos cinemas.