Afinal, J.K. Rowling realmente merece tanto ódio?

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Afinal, J.K. Rowling realmente merece tanto ódio?

Por Gus Fiaux

Quando paramos para pensar na “cara” da fantasia do século XXI, poucos nomes são tão fortes quanto Harry Potter. O que começou com uma franquia literária lá em 1997 logo se tornou um império multimidiático, com brinquedos, artigos licenciados, um parque de diversões e uma saga cinematográfica que conta com 8 filmes e uma nova franquia derivada.

A mulher por trás de tudo isso é J.K. Rowling. Britânica de nascença, a escritora vivia um período muito sombrio em sua vida após a morte de sua mãe. Entre idas e vindas e um casamento colapsado, ela encontrou a magia dentro de si própria e criou uma franquia respeitada por grandes nomes da ficção moderna, como Stephen King e Neil Gaiman.

No entanto, nos últimos anos, o nome de Rowling tem ficado na boca dos fãs – e não por um motivo agradável.

Para entender bem essa história, precisamos voltar para 2007. Harry Potter era uma franquia em seu auge, graças ao lançamento do filme baseado em A Ordem da Fênix, bem como do livro que encerraria “definitivamente” a saga do jovem bruxo, As Relíquias da Morte.

Em 19 de outubro desse ano, a autora compareceu a um evento de fãs em Carnegie Hall, para que pudesse ler trechos do sexto livro da franquia. Um fã perguntou sobre Alvo Dumbledore, mais precisamente se o bruxo já havia encontrado “amor verdadeiro”.

Nesse dia, Rowling revelou ao mundo que considerava Dumbledore um personagem homossexual. A mídia entrou em polvorosa e, para a época, muitos fãs ficaram felizes em ver um personagem tão importante e respeitável representando uma parcela bem marginalizada da sociedade.

Só havia um pequeno “problema”: isso nunca havia sido retratado em nenhum livro, ao menos de forma clara.

Entretanto, há de se lembrar uma coisa: em 2007, o público sequer clamava por representatividade e inclusão da forma que se fala hoje. Qualquer migalha era visto por minorias como uma forma positiva de interação – e no caso de Harry Potter, uma das franquias mais populares do século, tal afirmação por parte da autora era um reconhecimento sem precedentes.

Se entrarmos no mérito da publicação, vale lembrar que Rowling foi rejeitada por diversas editoras antes de estourar com uma empresa pequena, chamada Bloomsbury, que publicou os livros no Reino Unido. A autora teve que criar uma espécie de pseudônimo para que tivesse um nome mais “masculino”, já que muitos achavam que crianças não se interessariam em ler um livro de fantasia escrito por uma mulher.

Isso, por si só, já é uma prova do quão retrógrada a mídia literária era, na época. Claro que de lá para cá, muita coisa mudou, especialmente no auge dos movimentos sociais pró-inclusão. Mas mesmo em 2007, ainda era difícil estabelecer um universo contido seguindo suas próprias regras sem se deparar com obstáculos editoriais.

Com o fim da saga, Rowling disse que descansaria por um tempo. Ainda assim, ela nunca parou. De lá para cá, Rowling se manteve ativa nesse universo. Primeiro, ela escreveu Os Contos de Beedle, o Bardo, um livro antológico de contos que existe no próprio Mundo Bruxo.

Apesar de ser um reconfortante retorno aos fãs para esse universo, o livro serviu de pouca coisa para aumentar o espólio monumental da autora. Em vez disso, o lucro foi revertido para uma nobre causa: a Lumos, uma ONG criada pela própria escritora para pôr fim aos orfanatos e à institucionalização que deixa tantas crianças em uma fila de espera interminável para encontrar novos lares.

Rowling sempre esteve engajada nesse tipo de causa social. Parte de seus lucros sempre foram destinados à instituições solidárias.

Mas em termos de ficção, a autora continuou despontando por aí como uma grande “arquiteta de universos”, mesmo depois do fim de Harry Potter. Com o lançamento do Pottermore, um portal exclusivo para os fãs da saga, a escritora passou a manter mais contato com os fãs, divulgando materiais extras e novas informações a respeito do que aconteceu com os personagens após o fim da saga e até mesmo novidades relacionadas à história do Mundo Bruxo.

Além disso, ela também sempre mantinha um canal aberto no Twitter, onde conversava com os leitores e respondia suas perguntas, acrescentando ainda mais contexto aos seus livros e à saga de filmes subsequente.

Em 2013, no entanto, ela anunciou seu retorno definitivo à franquia com o lançamento de Animais Fantásticos, o spin-off que se passava cerca de 70 anos antes de A Pedra Filosofal. A franquia, originalmente anunciada como uma trilogia, ganhou uma encorpada e deve receber, ao todo, cinco filmes.

E foi aí que as polêmicas começaram.

Desde então, uma parcela dos fãs – impulsionados por uma mídia exagerada – têm pintado Rowling como uma louca desvairada, que anuncia representatividade a torto e direito em suas vias de comunicação, sem se importar em realmente mostrar essa inclusão, seja nos livros ou nas telas. Isso inclusive fez com que, no ano passado, a autora simplesmente parasse de usar as redes sociais para se comunicar com o público – afinal, independente do que ela fizesse, seria alvo de críticas e apedrejamento virtual.

O auge disso aconteceu na semana passada. Em um dos extras do Blu-Ray de Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald, a escritora falou que o relacionamento entre Alvo Dumbledore e Gerardo Grindelwald tinha uma “dimensão sexual”, e isso obviamente foi amplamente divulgado nos portais de informação.

A maior repercussão disso se deu no Twitter. A autora se tornou primeiro lugar nas trends, sendo alvo de críticas e piadas degradantes que a usam como um totem de como não se criar representação midiática. Aos montes, memes e imagens começaram a circular nas redes.

A grande questão é: isso é justo?

Temos completo direito de exigir dos autores de grandes obras por aquilo que queremos ver. Na era da consciência social, é impensável fazer um filme, série, livro, game ou qualquer coisa que ofenda um grupo específico. Além disso, a representação está começando a surgir de forma homogênea, dando espaço para vozes que antes não eram ouvidas.

Mas vale lembrar que essa é uma mudança que começou há poucos anos. Desde então, claro que estamos vendo um grande boom de inclusão em diversas mídias, e o Mundo Bruxo deveria se adequar a isso para que pudesse atingir um público mais amplo – o que muito lentamente já está acontecendo. Independente de seus méritos e defeitos, Os Crimes de Grindelwald é um dos filmes mais diversos da franquia, e já proporciona algumas pistas sutis sobre a relação entre Dumbledore e Grindelwald.

Claro que ainda há muito trabalho a ser feito. Mas não faz sentido tirar a declaração da autora de contexto, jogá-la na mídia e dizer que, de repente, Rowling começou a dizer que Hermione é cadeirante ou o próprio Harry é descendente de árabes. Até porque não é isso que está acontecendo.

Ainda há três filmes em desenvolvimento para Animais Fantásticos. A escritora está, atualmente, reescrevendo o roteiro do terceiro, uma vez que Os Crimes de Grindelwald não foi o sucesso de bilheteria que a Warner Bros. esperava. Mas com as pistas deixadas pelo segundo filme, ainda há muito a se desenvolver em termos de universo e de história – e devemos cobrar, mas não destruir a imagem de alguém que parece estar querendo aprender e trazer mais para todos os tipos de fãs.

E não faz muito sentido criticar a autora por revelar coisas que “estavam só na cabeça dela”. Porque, seguindo essa lógica, precisaríamos criticar qualquer criador que resolve dar novos detalhes sobre sua obra em entrevistas, comentários e material extra. Ela realmente tem conhecimento desse universo (afinal, ela é a “dona”). E o que podemos fazer é cobrar para ver isso nas telas, não acabar com a imagem da mulher porque ela decidiu que um personagem que ela mesma criou será assim e assado.

Particularmente falando, acho que J.K. Rowling sofre os mesmos problemas que qualquer ser humano. Ela não é perfeita. Em uma experiência completamente pessoal – e você não precisa concordar comigo –, me senti decepcionado e traído pela declaração dada pela autora envolvendo a escalação de Johnny Depp na franquia. Mas isso não apaga o universo que ela construiu e muito menos o trabalho, dentro e fora das páginas, que ela fez ao longo de mais de vinte anos.

J.K. Rowling precisa se adaptar aos novos tempos. Isso é um fato não apenas para ela, mas para qualquer artista ou marca que deseja se comunicar com um público maior e mais diverso. No entanto, os ataques em massa tem sido mais contraproducentes e mostram que uma parcela do público não está pronta para estabelecer um diálogo.

 

Na galeria abaixo, fique com imagens de Os Crimes de Grindelwald:

Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald está disponível em DVD Blu-Ray.