Por que The Witcher importa?

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Por que The Witcher importa?

Por Lucas Rafael

Quando o primeiro game de The Witcher foi lançado em meados de 2007, ele entrou no radar dos fãs mais assíduos de RPGs eletrônicos e títulos de fantasia, passando despercebido pelos holofotes da glória que atualmente iluminam a franquia. Este primeiro jogo, desenvolvido por uma produtora de games polonesa, a CD Projekt Red (que atualmente é uma das mais respeitadas do ramo) continuava uma história estabelecida pelos livros do escritor polonês Andrzej Sapkowski.

A série de livros foi publicada através da década de 90, acompanhando as andanças de Geralt de Rivia; um Bruxo treinado desde a infância para caçar criaturas dantescas que assolam um mundo de fantasia decadente. Além da rica mitologia estabelecida por Sapkowski na franquia (com influências bem nítidas das lendas eslavas e anglo-saxãs), os primeiros livros (aqui no Brasil você os encontra como o Último Desejo e Espada do Destino) contam com um apelo bastante pulp. São sete livros no total, envolvendo caçadas intensas a criaturas da noite, golpes palacianos conspiracionistas e as questões filosóficas do que é ser um homem e o que exatamente define algo do mal; quem são os verdadeiros monstros em uma terra decadente de assassinos e mentirosos e criaturas fabulescas que rumam pelas estradas desertas ao subir da lua.

Os livros do Bruxo até que venderam bem antes de serem efetivamente traduzidos para os EUA em 2007, com o lançamento global do primeiro game da franquia. Vale a pena destacar aqui que Sapkowski vendeu o direito de seus livros para as adaptações eletrônicas sem exigir uma fatia dos lucros por não acreditar no potencial dos jogos, decisão que fez ele se arrepender amargamente a longo prazo.

Mas enfim, desde a publicação dos livros, demorou cerca de 20 anos até a tradução dos mesmos para o inglês em 2007, ano de lançamento do primeiro Witcher.

Até aqui, temos um escritor desacreditado que concebeu um universo imerso em fantasia e decadência através de uma série de livros que atingiu relativa popularidade na Polônia, vendendo seus direitos para uma desenvolvedora local (até então especializada mais em traduções de outros jogos para o Polonês) trabalhar em um título de nicho. As coisas só foram ganhar uma tração maior após o lançamento de Witcher 2: Assassins of Kings; game que modernizou a franquia , apresentando uma aventura mais polida e palatável do personagem para uma gama maior de jogadores. Com uma narrativa complexa permeada por escolhas, o RPG de ação se tornou extremamente popular, chegando a ser presenteado para o presidente Obama pelo primeiro ministro da Polônia.

Então, tivemos Witcher 3: Wild Hunt, título que catapultou a franquia a níveis de popularidade extremos, fazendo com o que a mitologia de Sapkowsi se tornasse uma espécie de tesouro cultural Polonês que foi abraçado com amor no mundo inteiro.

E acreditem, diversos aspectos culturais da Polônia (um dos últimos países pagãos do mundo) estão estampados em Witcher. A mitologia eslava obscura que permeia muito da franquia, no entanto, funciona em seu benefício. Sim, existem elfos e vampiros e artifícios sobrenaturais manjados empregados ali, mas também tem muita coisa pagã estranha que dá aquele gostinho de novidade aos leitores não familiarizados com aquela cultura.

Embora O Último Desejo tenha sido o segundo livro da franquia a ser publicado (o primeiro nem é mais publicado), é recomendável que se inicie a leitura por ele. Sem seguir um enredo padrão, ele conta com diversas histórias isoladas que introduzem o leitor ao universo de Witcher; mostrando Geralt em suas crises existenciais, amantes e na eterna filosofia do que exatamente determina se um monstro deve ou não ser morto: o que discerne uma criatura de um ser pensante, afinal?  O Último Desejo é uma leitura bastante fácil e digerível, indispensável para aqueles que foram cativados pela essência dos jogos.

Uma das grandes sacadas destes livros (que chega a ser carregada para os jogos) reside na subversão do conto de fadas: o “felizes para sempre” geralmente é substituído por algo constrangedor, cínico ou irônico que coloca os personagens em situações atípicas.

Mais pra frente na literatura, vemos Geralt contemplar seu passado em Kaer Mohen, seu relacionamento com Ciri e Yennefer é melhor explorado, entre outras linhas narrativas que vemos nos jogos ganham maior profundidade através das páginas. Mas então, qual é a relação da literatura com os jogos? Basicamente, Geralt “morre” ao desfecho do último livro, e é daí que o primeiro game se inicia; com os roteiristas estabelecendo uma nova continuidade na qual o Bruxo sobrevive, carregando o flagelo de ter perdido sua memória.

A justificativa narrativa de que Geralt perdeu sua memória serve como um pretexto perfeito para o game ignorar o personagem estabelecido pelos livros até então, fazendo com o que jogador sinta-se livre para traçar seu próprio caminho de escolhas calçando os sapatos do Bruxo.

O primeiro game da franquia, embora seja querido por muitos, envelheceu mal em alguns aspectos: seu combate rígido e de movimentação estranha parece extremamente mal polido hoje, e algumas animações de personagens são inusitadamente hilárias.

Os mapas continuam belos, mas talvez o maior entrave seja a dificuldade do jogo; que conta com diversas mecânicas podadas na indústria dos games atualmente. Witcher 2 já trouxe uma aventura mais polida e visualmente encantadora, trocando a atmosfera pagã por conflitos humanos acerca de assassinatos reais e conspirações palacianas.

O terceiro game da franquia traz um equilíbrio saudável entre estes temas, sendo o mais popular, é também aquele cujo o combate conta com mecânicas mais simplificadas para abraçar um mercado maior de jogadores. Detalhe que aqui, simplificada não quer dizer ruim; embora o jogo sofra com algumas de suas mecânicas, elas são eficientes dentro de sua proposta.

Um detalhe adorável nesta relação jogos-livros é como Sapkowski descreve a luta de Geralt como “uma dança”, algo muito bem traduzido no terceiro game da franquia: o impacto dos golpes são brutais, ainda que sua execução seja graciosa.

Enfim, Witcher é uma franquia com raízes em um solo de improbabilidades: Sapkowski sempre lutou com seu desejo para se tornar escritor de fantasia em uma Polônia cada vez mais industrial. Ele agora é um autor de renome naquelas terras, após ter concebido uma mitologia única com prosa moderna. Um estudiozinho daquele país resolveu adaptar esses livros em um jogo de RPG de maneira nichada, dando o seu máximo dentro de um orçamento limitado para entregar um produto aceitável.

Witcher é importante para a cultura, seja nos jogos ou nos games. É fruto de mentes dedicadas que não desistiram de um caçador de monstros de cabelo esbranquiçado vagando por um mundo terrivelmente parecido com o nosso em seus princípios morais e degradamento, com personagens que ainda não abriram mão da esperança.

E aí vem a série da Netflix com Henry Cavill. Sabia que Witcher já teve uma série de TV polonesa? Spoiler: ninguém gostou dela. Agora é esperar para que a nova série entregue o resultado esperado de uma franquia conhecida por sua qualidade. Que as mentes dedicadas não desistam de Witcher agora.

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