É difícil pra caramba fazer uma boa versão em live-action de super-heróis!

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É difícil pra caramba fazer uma boa versão em live-action de super-heróis!

Por Felipe de Lima

Se hoje nós somos privilegiados com uma gama gigantesca de produções cinematográficas baseadas em histórias em quadrinhos, é preciso voltar no tempo e refletir sobre a ideia da criação dos super-heróis. Independentes de editoras, eles começaram sua ascensão no final da década de 1930, rapidamente se tornando ícones da cultura popular.

No entanto, o processo de criação dos personagens e histórias nunca foi simples. Há diversos jeitos de colocá-los nas páginas de quadrinhos, mas tudo parte de um conceito inicial, uma ideia que traz suas principais características e atributos. Sem isso, as chances de fracasso são altas. Super-heróis tendem a ser complexos, contando com planos de fundo estabelecidos antes chegarem às bancas. Até mesmo os quadrinhos tradicionais publicados na Era de Ouro, que, por mais que tivessem abordagens aventurescas e de fácil absorção, traziam mensagens em suas entrelinhas, tidas como lições de vida para os leitores da época. Apesar de conceitos relativamente simples, os personagens das décadas de 1930 e 1940 sempre carregaram discursos que ganharam mais e mais força ao longo dos anos.

›PERSONAGENS EM TEMPOS DE GUERRA

A Segunda Guerra Mundial foi responsável pela criação de diversos protagonistas surgidos da cólera da batalha. Três deles se destacam: Capitão América, Mulher-Maravilha e Namor.

Capa da primeira revista do Capitão América publicada em Março de 1941

Capitão América trouxe consigo uma ideia que – com exceção de alguns eventos recentes – permanece quase inalterada. Se trata de um homem comum se tornando um grande soldado pronto para defender seu país. Steve Rogers foi criado por Joe Simon e Jack Kirby como uma resposta aos inúmeros personagens com temáticas patrióticas que estavam surgindo na época.

Sua primeira revista foi publicada em Março de 1941 e trazia na capa o herói esmurrando Adolf Hitler, mesmo que os Estados Unidos ainda não tivessem, de fato, ingressado no conflito – algo que não aconteceria pelos próximos nove meses.

A Mulher-Maravilha não segue por um caminho muito diferente, até mesmo seu traje na época tinha um apelo muito patriótico e grande parte das suas histórias mostravam a heroína em meio a batalha. Diana apareceu pela primeira vez em dezembro de 1941 e foi a primeira super-heroína proeminente. Seu criador, o psicólogo Willian Moulton Marston queria transformar o mercado dominado por heróis do sexo masculino colocando mulheres no mesmo patamar.

Primeira aparição da Mulher-Maravilha na Sensation Comics em 1941

Na época os personagens mais populares eram Batman, Capitão América e Superman. Marston via em Diana alguém que poderia inspirar jovens garotas e trazer mais leitoras para o mundo dos quadrinhos. Em 1943, ele falou sobre a heroína e sua citação se tornou histórica.

“Garotas não vão querer ser garotas enquanto nosso arquétipo feminino for desprovido de força, vigor, e poder. Não querendo ser garotas, elas não querem ser sensíveis, submissas, amantes da paz como boas moças devem ser. As qualidades fortes das mulheres foram desprezadas por causa de suas fraquezas. A solução óbvia é criar uma personagem feminina com toda a força do Superman e todo o fascínio de uma boa e bela mulher”.

Criado por Bill Everett para uma edição única na Lloyd Jacquet’s Motion Picture Funnies Weekly em abril de 1939, Namor possui uma concepção que o difere dos demais heróis. Sendo adquirido pela Timely Comics (que viria a se tornar a Marvel) cinco meses após sua criação, o personagem foi um dos primeiros sucessos da editora.

Capa da edição quatro da Marvel Mystery Comics, lançada em 1939

Ao contrário de como foi representado em sua estreia, as histórias dentro da Casa das Ideias trariam um Namor com ares de vilão, atacando navios e aviões acima do oceano.

Mas não é por acaso que o Príncipe Submarino foi tratado dessa maneira. Com o desenrolar da Segunda Guerra Mundial, sua aparência foi se tornando cada vez mais oriental, como uma forma de detrimento do povo nipônico, algo que era extremamente comum na Cultura Pop da época e que se tornou ainda mais popular depois do ataque a Pearl Harbour em 1941.

Com o impacto cultural e social do acontecimento, a Timely se viu obrigada a reajustar o personagem. A partir daí, Namor passaria a ser o primeiro anti-herói das histórias em quadrinhos. Sua aparência foi ocidentalizada e as vítimas de seus ataques se tornaram majoritariamente embarcações nazistas.

Trazer uma versão cinematográfica do Namor onde o personagem é interpretado por um ator asiático seria uma grande resolução para a Marvel contribuir com a inclusão de atores orientais em seus filmes, ao mesmo tempo em que respeita a formulação do anti-herói.

›COLOCANDO UM PERSONAGEM EM TELA

O super-herói que eu acredito que melhor foi adaptado para uma produção live-action é o Demolidor. Stan Lee discute toda a definição do Homem Sem Medo no vídeo abaixo, onde as semelhanças dos quadrinhos com a versão apresentada na série da Netflix chegam a ser assustadoras.

A adaptação do Demolidor para a série acontece dentro do já estabelecido no Universo Cinematográfico da Marvel, onde de a região Nova Iorque conhecida como Hell’s Kitchen foi destruída na batalha dos Vingadores contra os Chitauri, criando o ambiente marginalizado perfeito para o surgimento de um vigilante. A Hell’s Kitchen dos quadrinhos do Demolidor é violenta e perigosa, indo na contramão da localidade desenvolvida e suburbana dos dias de hoje, que dificilmente conseguiria abrigar uma série cujo objetivo é resgatar as origens do protagonista.

Isso não acontece apenas com o Homem Sem Medo, os antagonistas da produção seguem pelo mesmo caminho. Justiceiro e Rei do Crime tem suas origens, conceitos e bagagens totalmente respeitadas dentro da série, ainda que exista uma certa liberdade para determinadas modernizações.

Do lado da DC, The Flash traz uma sublime moldagem de Barry Allen, misturando os ideais de otimismo da Era de Ouro com um senso de esperança que adequam o velocista. Apesar dos roteiros da série serem muito prejudicados pelo formato procedural, é evidente que o personagem da televisão carrega o peso e mensagem dos quadrinhos.

Christopher Reeve em imagem de divulgação de Superman: O Filme

Porém, boas adaptações não estão restritas à televisão. O Superman de Christopher Reeve é a encarnação dos ideais do Homem de Aço, enquanto o Homem de Ferro de Robert Downey Jr. carrega nos ombros o peso da tragédia humana.

Outro fator de extrema importância na adaptação de um personagem é seu visual. É natural que, nos quadrinhos, a passagem do tempo acabe alterando certas características dos trajes dos heróis para torná-los mais palpáveis e – dependendo da tendência – tecnológicos.

No entanto, as versões live-action tendem a equilibrar todos esses elementos. Há trajes dos quadrinhos que são carnavalescos demais para o senso realístico das grandes produções. Não é todo super-herói que funciona como o Homem-Aranha, que agora possui um traje carnavalesco, mas que, ao mesmo tempo, é tecnológico e condizente com a personalidade de Peter Parker.

›DIVERSIFICANDO

Em alguns casos, a ideia por trás criação permite que um personagem tenha sua etnia, sexualidade, e gênero alterados, tornando as produções mais inclusivas.

Jeri Hogarth interpretada por Carrie Ann-Moss em imagem de divulgação de Jessica Jones

Jeryn Hogarth, por exemplo, era um advogado mulherengo que auxiliava Danny Rand nos quadrinhos. Em Jessica Jones, Jeryn virou Jeri, mas todos os outros elementos foram mantidos, indo desde sua personalidade até seu status. A diferença é que agora se trata de uma mulher.

Indo além, há nada na formulação da história de Luke Cage que o impeça de ser latino ou árabe. A história do Herói de Aluguel está cercada pelo sistema carcerário – muitas vezes – racista da América. No entanto, é redundante uma adaptação onde uma minoria é trocada por outra, mesmo que a ideia inicial permita.

O próprio Homem-Aranha poderia ter outra etnia, a ideia dele ter um traje completamente fechado é para sugerir que, independentemente da cor, qualquer pessoa pode ser o herói. Trazer a caracterização de Peter Parker para o Queens atual, como acontece no novo filme, permite que o herói seja de qualquer etnia, visto que a localidade é uma das mais diversificadas de Nova Iorque. É claro que Peter foi estabelecido como garoto branco e tem sua imagem cravada no imaginário dos leitores desta maneira. Contudo, a história de Peter Parker é inclusiva e a resposta da Marvel Studios e Sony Pictures para isso é trazer o elenco mais diversificado possível para Homem-Aranha: De Volta ao Lar.

›NEM SEMPRE TÃO BOM

Batman e Superman já tiveram suas diferenças, mas o que sempre nutriu os sentimentos que um tem pelo outro foi o respeito pela vida humana, coisa que se perdeu completamente em Batman vs Superman: A Origem da Justiça. Apesar dessa versão do Cavaleiro das Trevas ser visualmente a mais fiel aos quadrinhos, ignorar algo estabelecido ao longo de mais de 70 anos é um erro que os fãs não perdoam.

Já o Homem de Aço foi desconstruído e apagado nos dois últimos filmes. Seu senso de heroísmo retornou um pouco mais evidente em Batman vs Superman, mas, ainda assim, apenas a versão estendida do filme consegue se aprofundar nesse aspecto. Logo, não é surpresa que a Mulher-Maravilha tenha sido a personagem mais bem aceita do filme. Diana continua uma heroína, uma mulher forte e guerreira, basicamente, as características essenciais da heroína, que foram enaltecidas no filme solo, executando exatamente a ideia de seu criador.

Poster individual do vilão de Vingadores: Era de Ultron

Mas os deslizes não são exclusivos da DC. Vingadores: Era de Ultron também errou feio na adaptação dos Maximoff ao transformar dois irmãos de origens judaicas em lacaios de uma organização com origens nazistas. Os fãs e a comunidade religiosa encaram isso como um desrespeito com os personagens e com todo um grupo de pessoas que sofreu pelas mãos do regime nazistas no passado.

Quanto ao Ultron, o vilão foi criado pelo Homem-Formiga nos quadrinhos e, consequentemente, sua aparência emula a de uma formiga com características humanoides. Quando o filme apresenta Tony Stark como o criador do personagem, há uma incongruência e desrespeito com a caracterização original. Tanto a aparência do vilão quanto o efeito de colônia de seus clones deixam te der um comportamento e significado alinhado ao seu criador original e se tornam apenas easter-eggs, quando, na verdade, deveriam ser parte essencial da história.

›ESPELHO DO MUNDO

A parte mais frustrante de levar um personagem das histórias em quadrinhos para o cinema é possibilidade de não conseguir honrar tudo o que ele representa. Super-heróis carregam legados e histórias feitas para nos inspirar. Eles tocam o nosso subconsciente e mudam a direção de nossas vidas, nos colocam em um caminho melhor e nos fazem refletir sobre o mundo ao nosso redor. No entanto, às vezes esses personagens nos incomodam, trazem palavras que não queremos ler, nos deixam com raiva, incrédulos com rumos das histórias, irritados com as revelações. Porém, isso acontece por um motivo: Super-heróis são o reflexo da nossa imagem no espelho… e nem sempre nós somos bonitos.

As histórias de super-heróis nunca foram apenas sobre batalhas megalomaníacas ou destruição em massa, mas sobre passar uma mensagem para o leitor. Elas falam sobre lutas por direitos, sobre quebrar barreiras, sobre encarar seus demônios interiores e, acima de tudo, ela são sobre personagens que vivem na ficção, mas representam pessoas do mundo real.

 

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