The Wicked + The Divine: O Ato Faustiano
The Wicked + The Divine: O Ato Faustiano
Um dos quadrinhos mais esperados de 2014 finalizou seu primeiro volume. Entre a apresentação de seus personagens, surpresas e ilusões, encaramos a questão: Estilo se iguala a substância?
Kieron Gillen e Jamie Mckelvie já vem há algum tempo se tornando figuras conhecidas no mundo dos quadrinhos. Os criadores de “Phonogram” acreditavam terem atingido o ápice de suas carreiras quando o segundo volume de “Jovens Vingadores” alcançou níveis astronômicos de vendas digitais, ótimas críticas e uma legião de fãs que divulgavam e discutiam a trama online. A HQ criou uma legião de fãs que criavam arte e discutiam a história de uma maneira há muito não vista. Veio então, “The Wicked + The Divine”.
A cada noventa anos, doze deuses reencarnam como belos jovens. Eles são amados, eles são odiados. Em dois anos, estão mortos. Nesse tempo, adquirem grande poder, muita carisma e todos os deleites de serem adorados. Tentam brilhar o máximo possível e torcerem para estarem na próxima reencarnação. Cada um dos doze deuses, aparentemente, vem de uma cultura diferente. No “Panteão” (como é chamado o grupo de deuses reencarnados) que acompanhamos, temos de Lúcifer a Amaterasu. Nas antigas reencarnações eles vieram como músicos, poetas e escritores. Dessa vez o grupo é unicamente formado por artistas pop.
Se em “Phonogram”, Gillen explora nostalgia ao tratar música como magia e embalar a trama em pop brit dos anos 90 e em “Jovens Vingadores” ele estava irritantemente ciente de sua relevância social e da juventude atual com selfies, instagram e tumblr, em sua nova obra ambos parecem ser esquecidos. The Wicked and the Divine se inicia em janeiro de 2014. Porém poderia ser em qualquer momento dos últimos e próximos vinte anos. Gillen sempre utiliza de sentimentos muito humanos para contar suas histórias, seja ao explorar questões presentes em sua própria vida ou de colegas, é emocionalmente honesto e ele tem muita sorte de ter um competente artista como McKelvie para passar tudo isso em imagens.
Ao contrário de seus trabalhos anteriores em dupla, eles descaradamente jogam nomes importantes para criar um sentimento de autoridade no meio de uma conversa e colocam o cinismo direto e sem rodeios no discurso de seus personagens. Eles são deuses, afinal, não haveria como esperar menos. É o tipo de história que não tem como não ser ousada. Se não fosse, provavelmente não teria se tornado, com menos de dez edições publicadas, o fenômeno que se tornou. “The Wicked + The Divine” foi audaz desde sua concepção, ao misturar mitologia em uma alegoria de nossa sociedade adoradora de celebridades.
Na trama, o mundo nos é apresentado pelos olhos de Laura… Ela não é uma deusa, na verdade, ela não é muito importante, Laura é uma fangirl, uma fã que quer muito ser uma deusa. Ela ama o Panteão (menos a maldita Tara), ela sonha com seus ídolos… Tudo muda quando ela conhece Lúcifer. O Deus da mentira e da trapaça, nesta encarnação habitando o corpo de uma jovem de dezessete anos, leva Laura para trás dos holofotes. The Wicked and the Divine é isso: “Através do espelho e o que Laura encontrou por lá”. Se torna mais do que uma alegoria a adoração de celebridades, teoria de conspiração ou, segundo alguns, cópia de Deuses Americanos de Neil Gailman. WicDiv, como ficou conhecido pelos leitores, é principalmente sobre essa jovem extremamente comum e ordinária que se encontra onde exatamente quis estar.
Todos já ouvimos aquele antigo ditado: “Cuidado com o que deseja…” correto? Que bom nos entendermos…
Após um violento evento, Lúcifer é presa e cabe a Laura investigar os outros deuses e descobrir quem a incriminou. Tudo isso enquanto nós, os leitores, tentamos nos decidir se Lúcifer está falando a verdade e conhecemos o Panteão atual. Lúcifer, afinal, é o pai das mentiras, então é fácil duvidar de sua palavra. Laura, crendo veemente em Lúcifer, desce pela toca do coelho e vai atrás do verdadeiro culpado.
O título do volume é bem sugestivo: “O Ato Faustiano” vem de Dr. Fausto, uma lenda alemã sobre um jovem que troca sua alma com o diabo para ganhar conhecimento ilimitado e prazeres mundanos. O Conceito não se aplica apenas a Laura, que seria a primeira pessoa a trocar sua alma para se tornar uma deusa, mas também aos próprios deuses. Eles têm tudo, porém, em dois anos estarão mortos. A regra mórbida parece pairar sobre as cinco primeiras edições com os integrantes do Panteão vivendo ao máximo, aproveitando o pouco tempo que possuem. A exploração da mortalidade é um dos principais pontos na história.
Toda a geração Y se funda no conceito de ser importante, de ser diferente e de como isso a destaca de alguma forma, porém o medo do esquecimento, de não fazer uma diferença e de que no fim, fomos apenas uma piscadela no tempo, assombra a mim. Assombra a praticamente qualquer outro jovem que eu conheça. Esse é o medo de toda uma geração e, nesse ponto, WicDiv se sobressai ao colocar a tormenta de diversos jovens no papel, não apenas isso, mas mostrar que há esperança. Não estamos acabados, estamos apenas começando.
Não bastasse tudo, temos a gigantesca preocupação de WicDiv em seu estilo. Seja com o rápido e mal-humorado roteiro de Gillen, com a belíssima arte de Jamie McKelvie ou a coloração de Matt Wilson, que é de tirar o fôlego. Seja com o “1234” inicial, o show de Amaterasu, a transformação de Lucífer ou a batalha d’A Morrigan com Baphomet no metrô. O visual é memorável. Para quem conhece a arte de McKelvie sabe o quão limpa e precisa ela é. As cores também são vivas e atrativas. Ambos trabalham até mesmo o espaço em branco ao seu favor, assim como a escuridão e o vazio, apenas fantástico.
Ao ler este primeiro volume, é fácil descobrir o que Kieron e Gillen, ao criarem a história e os personagens, querem nos passar: O sentimento de quando você é a pessoa mais importante na sala, a mais bonita da festa, o melhor em tal esporte. O sentimento de quando todos os olhos estão em nós e nos sentimos como se nada pudesse dar errado. O sentimento de ser belamente invencível.
Tentar captar essas emoções em uma folha de papel parece ser difícil, mas explica perfeitamente o porquê de Wicked + Divine ser tão focado em sua imagem, em sua marca, em sua hype. Neste caso em particular, o estilo/a moda se torna um dos elementos principais da substância, da qualidade literária. Exatamente como o estilo de um artista pop é intrinsicamente parte de quem ele é e como ele é visto.
Além disso, é interessante notar a maneira com que os autores fazem dos deuses alegorias a artistas pop que conhecemos atualmente: Amaterasu obviamente se baseia em Florence + the Machine; Lúcifer é uma mistura de David Bowie com Madonna; A Morrigan é admitidamente baseada em Kate Bush, com toques de Natasha Khan (Bat for Lashes); Baphomet se assemelha a Alex Turner do Artic Monkeys e Dan Smith de Bastille; Baal lembra Kanye West com sua atitude e seus ternos, Sakhmet é Rihanna na época de seu sidecut e Wodan é uma clara alegoria a dupla Daft Punk. E sem falar de Tara, a odiada deusa que sequer apareceu, porém é lembrada por sua mania de usar vestidos de carne e decotes gigantescos… Lembra alguém?
O Ato Faustiano é um inicio brilhante para um quadrinho novo e original, em todos os sentidos possíveis, criado por uma das melhores equipes trabalhando na área atualmente. No final de sua quinta edição, Kieron Gillen deixa uma pequena carta, em uma parte ele diz:
“Domine o momento. O futuro vai se ajeitar e o passado irá apenas te sufocar (…) O tema de The Wicked + The Divine pode ser bem óbvio. Não importa se você tem dois anos ou vinte ou de três a dez (…) A questão se torna como você irá decidir gastar este infinitamente breve, precioso tempo? (…) The Wicked + The Divine é sobre tudo. The Wicked + The Divine tem um título muito longo. *Suspira*. Me desculpem. (…) Basicamente no ultimo ano eu queria começar a gritar e não parar mais. The Wicked + The Divine sou eu tentando transformar isso em uma música pop. Amo todos vocês. Gostaria de que tivéssemos mais tempo juntos”.
E para finalizar, não há como ficar sem música. Então além de poder conferir a playlist criada por Gillen no Spotify, deixo aqui a música Laura, de Bat For Lashes. A música, segundo Gillen, o inspirou em pensar em toda a concepção de The Wicked + The Divine. Basta dar uma olhada em sua letra para notar as semelhanças.
*The Wicked + The Divine ainda não possui data ou previsão de publicação no Brasil.